domingo, 7 de dezembro de 2014

Sobre Pittys e Anittas

Numa sociedade em que o tamanho da saia de uma mulher sobressai o tamanho de sua força, precisamos de muitas Pittys para interferir discursos desatentos proferidos por Anittas espalhas pelos cantos.
Anitta disse que suas falas foram distorcidas. Talvez não tenham sido.

Talvez suas ideias, incrustadas como sujeira de muito tempo, tenham cegado seus olhos - afinal, é difícil nos livrar da casca machista que a sociedade fez crescer sobre nossa pele, escondendo nossas pernas, nossos peitos e corações.

domingo, 30 de novembro de 2014

Fidelidade é sorrir até a comida esfriar

Gosto de restaurantes - pela comida e pelas companhias indiretas que arranjamos ao escolher uma mesa qualquer. Gosto também de observar pessoas, não para lhes invadir a privacidade, mas para conhecer uma infinidade de mundos diferentes, singularizados em cada ato.

Hoje entrei num restaurante e sentei entre dois casais. A maneira como conversam durante a refeição pode dizer muito sobre o relacionamento. Um deles conversava e ria; misturado ao aroma do prato sobre a mesa, era possível sentir cheiro de amor vivo. Os outros dois, sentados na mesa ao lado, comiam em silêncio. Um olhando para o prato, outro para o celular - a comida, pela aparência, estava em ótimo estado, o amor foi que estragou. 

Outro dia, numa conversa de bar, tentou-se definir o conceito de infidelidade. Dentre as tantas respostas e definições, encontrei a minha ao encarar o silêncio do casal da mesa ao lado. 

Infidelidade é deixar o amor estragar e seguir o resto da vida olhando para o prato enquanto comem, sem rir nem conversar. E assim morrem, fiéis ao prato e infiéis à vida e à possibilidade do amor.

Meu pedido chegou antes de poder chegar à mesa deles e recolher a peteca de um jogo solitário - peteca que é lançada e o outro não devolve cai no chão. 
O silêncio e o hiato de sorrisos é a prova de que já não há jogo algum; e também a prova de que infidelidade não é só beijos, abraços e pensamento em outra pessoa. Infidelidade é continuar desviando o olhar para o prato; é deixar a peteca cair. 

Para o casal que sorria, mais um chopp; para os outros dois da mesa ao lado, a conta logo após a última garfada. 

quinta-feira, 27 de novembro de 2014

Dois tempos

Abri a janela pela manhã e não entrou raio de sol, senti sopro de vento úmido dos lábios escuros de um céu chuvoso. Depois de tanta seca, o sol decidiu descansar e estirar-se por entre as nuvens, conduzindo feixes tímidos sobre parapeitos de metal.
Quando eu era pequena, o tempo era mais organizado - tinha calor no verão, em Abril os casacos já começavam a sair do armário para dar uma arejada, aliás, eu podia usar casaco pesado no inverno. O frio seguia firme e forte, fazendo com que no meu aniversário, um dia depois das festas de São João, o cantar ao redor do bolo soltasse fumaça das bocas que me desejavam felicidades. O frio, persistente, só começava a dar trégua em Setembro.

terça-feira, 11 de novembro de 2014

A vida é muito curta para que o sal não encontre os lábios

Encontrei um certo alguém que jurou nunca ter chorado depois de certa idade. 
O mesmo alguém jurou que isso o tornava forte - chorar é coisa de criança mimada. 

Eu sempre gostei de lágrimas e tenho pena daqueles que não se permitem sentir o salgado contido em cada gota de alegria ou decepção. Daqueles que seguram o choro, impedindo o entusiasmo, paixão, e tristeza de escorrer pela face, marcando o caminho com o rastro de sal que chega à boca ao final do percurso. 
Não imagino como seja a vida dos que obstruem os olhos para que não sejam reflexo d'água. Não deformam a expressão um só vez, mantendo o sorriso amarelo de sempre estampado logo abaixo do olhar cinza e inflexível. 

domingo, 9 de novembro de 2014

Dança de fogo e água

Somos copo meio cheio, meio vazio.
Possuímos no fundo da alma o nada e o abundante em equilíbrio. 

Quando copo meio vazio, externalizamos todo o nada guardado no baú de sentimentos  - estresse, raiva, impaciência e grosseria. Somos metade, meio vazios. 
A outra metade, no fundo do recipiente, contém líquido manso como o brilho das estrelas em noites tranquilas. 

Quando copo meio cheio, transbordamos o abundante. Os melhores tesouros que carregamos vibram, querem fugir do dentro que os bloqueiam, atingir o outro que os provocaram.

As pessoas têm o poder de despertar o nada ou o tudo em nós. 

Há muitos céus no íntimo de cada um, um céu para cada encontro da travessia. Porque o céu é local de reencontro com coisas que amamos e o tempo nos roubou -  no céu está guardado tudo aquilo que a memória um dia amou. 
O meu céu pode ser meio cheio, meio vazio; estar cheio de nada, ou vazio de tanto transbordar.
Pode ser um céu de fogo que, dizia Neruda, é a substância dos poetas.
Pode ser um céu de incêndio, que destrói poesias. 

Fogo enfeitiça os olhos com suas chamas. 
Há uma linha tênue entre a labareda mansa e a combustão descontrolada. As chamas começam a dançar frente aos olhos, os objetos vão perdendo os contorno e, ao final, tudo é fumaça. 
Se a faísca no céu dançará lentamente ou perderá o controle, depende da intensidade do sopro parido dos lábios do outro. 

As pessoas têm o poder de acender o fogo de sentimentos aconchegantes e de incendiar o céu, parte delas dentro de nós. Têm o poder de remar rumo à terceira margem do rio, que é a saudade de Riobaldo; e também o poder de seguir o fluxo das águas sem deixar o gosto da volta.

O fogo e a água que completa a metade do copo dançam conforme a música que exala a alma do outro - se harmoniosa, calmaria haverá; se desafinada, só o tumulto. 



terça-feira, 21 de outubro de 2014

Confiança é encontro de fim de mundos no desconhecido

Ela nunca confiara em ninguém. 
Seus pés nunca despregaram do chão de pedra da mureta situada entre a terra firme da razão e o abismo do sentir. Nunca saltara rumo ao desconhecido, permanecia no meio-fio, meio termo que, cedo ou tarde, deveria tornar-se definição completa. 

Confiança é uma dessas coisas extraordinárias que não necessitam de compreensão. 
Não tem data marcada para sentar-se à mesa e compartilhar o jantar, metamorfoseando-se em amigo de peito aberto para ouvir seus medos e abrandar os temores vindos do coração.
Confiança é uma convidada imprevisível. Para alguns, é companheira desde o nascimento, mãos que não se separam; para outros, chegada inesperada e tardia. 

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Educar é abrir os olhos para o belo

O ventilador da sala de aula abafada girava e Laura o encarava entediada. A voz estridente da professora chegava aos seus ouvidos e reverberava. O pó do giz irritava seu nariz. Todos os sentidos estavam ali, sendo estimulados por aquele ambiente nutrido de palavras, números e formas geométricas. A mente, ao contrário, criava asas e voava para longe, buscando um recanto no qual pudesse se desvencilhar dos testes e da pressão de terminar o exercício complementar antes do sinal.

terça-feira, 30 de setembro de 2014

Um dia disseram para eu me colocar em meu lugar. Eu fui.

Hoje à tarde, quando saía do trabalho, deparei-me com um casal almoçando em uma mesa sob o sol. Parei ao lado do carro e comecei a busca pelas chaves dentro da bolsa. Enquanto percorria todas as repartições daquela que continha uma boa parte dos meus dias, não pude deixar de ouvir o diálogo entre os dois – que mais parecia um monólogo, visto que ela, cabisbaixa, não tinha direito de resposta.
O momento foi breve, mas o suficiente para que a frase no imperativo chegasse aos meus ouvidos.

Coloque-se no seu lugar.

sábado, 27 de setembro de 2014

Amor é janela aberta para o sol entrar

A alma é névoa presa em vitrais e, quando ama, quer escapar por entre as frestas para misturar-se com outra que exala daquele que a recebeu de janelas abertas. 
Amor é mistura de sopros.

Numa dessas andanças, dei com um senhor que, sentado em sua cadeira, mãos sobre os joelhos, dizia estar esperando a morte chegar. Morrer, para ele, era reencontro. 
Praguejava por ter perdido as forças das pernas e, ainda assim, permanecer com a memória impecável. 
Clarice era o nome dela. 
Impossível esquecer a grafia e a entonação daquela voz ao apresentar-se pela primeira vez.
O som do nome dela entrou em seus ouvidos sem pedir licença. Instalou-se em sua mente sem que lhe fosse concedida permissão. Conhecê-la trouxe um vendaval que quase trincou seus vitrais. Forçou o cadeado. Bateu forte contra os grades de proteção.
Da segunda vez que a viu, abriu o maior sol. Céu aberto. Ele, protegido pelo blackout das grossas cortinas, permaneu no escuro - enxergava o brilho dela, mas relutou. Não a deixou entrar.
Ela, apesar das tempestades que já inundaram seus cômodos, era janela aberta. Sentia as correntes de ar em seus cabelos. Respirava todo o sopro da alma daquele que olhava pelo parapeito. 
Queria engolir cada pedaço de dentro para degustar o doce e o amargo que o outro poderia lhe causar.

domingo, 21 de setembro de 2014

Por um fio

Era sábado de manhã. 
Abriu os olhos e o dente, ainda de leite, estava ali dançando em sua gengiva. Junto ao balanço daquele que logo não faria parte do seu eu, chegou o medo de perdê-lo.
Passou dias sentindo sua presença, antes nunca percebida. Sua língua, sem querer, encontrava a peça bamba que tantas vezes fizera parte de seu sorriso e, ao encontra-la, sentia a dor - de saber que logo tal fio de raiz seria desfeito e aquele pedaço dela seria preenchido de nada. 
Espaço vazio circundado de outros que não poderiam substituí-lo. A substituição, que viria com a chegada do permanente, aconteceria no tempo certo. Até lá, espaço desabitado. 
Ela poderia simplesmente amarrar o famoso fio ao redor do dente, prendê-lo à porta e arrancá-lo de uma só vez. Mas preferia senti-lo em sua boca por mais um tempo, ainda que incômodo - era bom lembrar que ele estava ali quando tentava comer um dos biscoitos que sua avó preparava para o café da tarde. 
Por mais que tivesse se esforçado para que dança continuasse, sem remédio um dia ela parou. 
A cortina de sangue encerrou o espetáculo e, o protagonista, que estivera por um fio, naquele dia perdeu sua última ligação. Jazia ali em suas pequenas mãos molhadas de lágrimas.
Dormiu com seu companheiro de risos sob o travesseiro e, na manhã seguinte, ao passar a língua e sentir o vazio bem na frente da parte superior, chorou.

terça-feira, 16 de setembro de 2014

Azul é liberdade repousada

Leve mar leve esses medos dela. 

Era sempre noite naquela casa de muitos cômodos, todos preenchidos por mobiliários antigos e, em grande parte, sem utilidade. Era escuridão ainda que os ponteiros do relógio já tivessem passado pelo número doze pela segunda vez.
A casa, solitária, carregava histórias de gerações. Olhava o mar distante, para lá daquela montanha de pedras que se acumulavam sob seus pés. 
Era no distante que havia a leveza das ondas. Da janela do quarto do segundo andar, o castanho dos olhos dela assistia a um espetáculo de liberdade. E como elas eram livres!  
Vão e vêm, batem nas pedras, desfazem sua forma, viram espuma rasa e reinventam um novo ciclo sem perder sua essência, água que se confunde com firmamento. Azul arraigado como aquele preso à íris dele. 

Invejava o mar aberto. Sobre o mar não tem construção, é ele que se dispõe sobre as pedras.
As pedras dela eram sob, as da imensidão azul, sobre.
Ela cansou de apoiar-se na janela, fechou a cortina e desceu as escadas. Permaneceu tanto tempo ali, pisoteando aquele carpete carcomido pelo tempo, que os pilares do primeiro andar confundiam-se com suas pernas assustadas demais para o próximo passo. 
Talvez a casa fosse ela mesma. Isolada por seus medos e entulhos da vida de outros que carregava junto ao peito.

domingo, 14 de setembro de 2014

Passos de Dança

Primeiro, o tropeço. Em seguida, a dança.

Uma história sobre como a arrogância, quando ausente, faz o outro querer ser mais.

Ela não sabia sincronizar os pés em passos de dança. Em meio ao salão lotado, grudou as mãos trêmulas na cadeira - eu podia sentir o cheiro de medo mais forte que o aroma de seu perfume. 
Ele era um pé-de-valsa, como costumavam chamar aqueles que decoravam o palco com suas extravagâncias. 

Foi observando-o dançar que o coração deixou de ser só dela. 

segunda-feira, 8 de setembro de 2014

Construir é estar disposto

Essa história de que os opostos se atraem é pedra no sapato. 

Fernando Anitelli, poeta do O Teatro Mágico, cantou em Realejo: 
"Os opostos se distraem 
Os dispostos se atraem."

Talvez seja isso que funcione como imã: estar disposto. 
Enquanto você procura algum oposto para completar seu Yin-Yang outros mil dispostos estão ali, não para completar, mas somar e transbordar - e você, cego(a) que é, não vê. 
A dualidade das coisas, complemento dentro de si, é encaixe. 
Encaixes são limítrofes: são o que são, formas estáticas, sem surpresas. 

Estar disposto não é sinônimo de encaixe perfeito - as formas podem não se combinar. Mas, na dança fluida de um seguir os passos do outro para encontrar equilíbrio, os limites são esquecidos: só resta o desejo e a vontade de construir uma forma que extravase e seja particular de dois que almejaram estar ali. 

Estar disposto é isso - encarar as surpresas e fugir do pronto para erguer o próprio edifício, seja ele meio aberto, meio fechado, ou aberto por inteiro. 
No final, não importa se é oposto, importa se há vontade de começar a construção e seguir até a etapa final - acabamento e árvore na entrada para desfrutar da calmaria do continuar da trajetória. 

Um mundo por vez

É assim que as boas intenções morrem - você sente que simplesmente não adianta. Que, por mais que cave, nunca será suficiente para tapar o buraco. 
Aos poucos a gente se anestesia. Ou, como outros preferem pensar: o sofrimento vai deixando a gente menos sensível, como os pés que criam casca grossa de andar descalços. Na prática, começamos a fechar os olhos, fingir que não vimos.

Num desses fechares de olhos, pulamos o outro caído no asfalto da avenida como se ele fosse uma poça inconveniente que sujaria nossos sapatos.

As pessoas têm mania de me dizer que não podem resolver sozinhas o problema da desigualdade social. E eu tenho mania de enxergar um problema maior que a própria desigualdade: o não fazer nada só porque podemos pouco. 
A gente pode muito se coloca boas intenções, não nas horas vagas, mas naquilo que somos e fazemos todos os dias. 

Concordo com os céticos que gritam palavras de pessimismo: boas intenções diárias não resolvem o problema, imensamente maior que nossa existência individual. Não resolvem. 
Boas intenções não vão erradicar o prefixo da desigualdade do mundo, elas, particulares que são, mexem com um mundo por vez. E é assim que a solução chega e as boas intenções permanecem vivas: transformando um mundo por vez. 

Boa intenção é líquido raro combinado com gentileza.
E gentileza é daquelas coisas simples que não pedem tempo, dinheiro ou preparação - é conjunto de cores que colorem sem esforço.  

Hoje, ao não praguejar o carrinho de papel reciclado que atrapalhava o trânsito e fazia os ponteiros do relógio voarem, tornando meu atraso ainda maior, eu colori dois mundos - o meu e o dele, que, ao fazer o seu trabalho, recebeu um sorriso para variar os olhares de desaprovação.
É deste modo, colorindo um mundo por vez, que o cinza da desigualdade pode vir a ser diluído em outras tonalidades - amarelos de sorrisos, azuis de olhares tranquilos, verdes de boas palavras. 
Gentileza é arco-íris - trilha de cores. 

quarta-feira, 3 de setembro de 2014

Poesia nas miudezas dos dias



Depois de tanta secura, choveu. E, diante dessa noite inundada, afirmo: um dos maiores prazeres da vida, daqueles invisíveis aos olhos desatentos que teimam em ignorar os detalhes de tudo o que é simples - e não por isso menos grandioso, é dormir com o barulho de gota d'água na janela. 

Água que cai para lavar a alma sem molhar, música que bate no vidro e acalma os ouvidos acostumados ao som cinza das cidades. 
Cabe tanta poesia dentro de um pingo que cai e, ainda assim, aqueles de olhar fixo no óbvio, queixam-se quando o tempo começa a fechar. 



Por mais noites com chuva da janela e quartas que comecem limpas - livres da poeira acumulada dos dias.

domingo, 31 de agosto de 2014

Pensamento é tesouro de um só

No caminho da vida, a alma encontra outras mil e, raras as vezes, o encontro é forte o suficiente para carregar a marca da batida mesmo quando a estrada da outra trilha para além-olhos, lugar que não se vê daqui. 
Algumas dessas almas que nos atropelam têm passos lentos, percorrem grande porção do caminho ao nosso lado; outras, apressadas, correm para o além-olhos e, quando olhamos para o lado, só respiramos o rastro do poeira deixado por sua partida. 

A velocidade dos passos daqueles que entrelaçam seus dedos com os nossos em algum momento da trajetória é imprevisível, assim como o conteúdo da caixa lacrada que ela carrega como bagagem logo abaixo dos cabelos e, em alguns momentos, sob o peito, acompanhando o vai-e-vem do pulsar do coração. 
A caixa que, de tantos pensamentos, transborda pelos vincos, é fábrica de surpresas - mistura heterogênea de quereres, gostares, pensares, amares. E, mesmo que o outro abra uma fresta para que espiemos o mundo de sentimentos que existe em seu interior, ainda assim seria impossível abraçar o infinito de memórias que ela carrega.

Pensamento é o eu-abstrato. Eu que não se pode ver. 
E, por ser eu, primeira pessoa do singular, não satisfaz a curiosidade do plural. 

Por muito tempo quis saber o que tinha dentro da caixa daqueles que esbarravam em mim e, por muitas vezes, dei de cara com um cadeado maior que minha intromissão - muitos dos quais tentei arrombar à força. 
Caixa de pensamentos com cadeado quebrado perde o encanto. Sorte daqueles que descobrem que a curiosidade é o que mantém a vontade de deixar o outro caminhar junto.
Não dá pra saber se esse outro deseja entrelaçar os dedos com os seus na mesma intensidade que suas mãos desejam ser conduzidas, assim como não podemos prever quão rápidos serão seus passos - caminho de surpresas, mas são elas as responsáveis pelo encantamento: o não saber o que está por vir e seguir juntos, vencendo o medo a cada passo, para o além-olhos de dois - lugar que não se vê daqui.
Mas, para quem vai junto, não existe mais aqui, só o lá. 

quarta-feira, 27 de agosto de 2014

Ele disse que ia ligar. E não ligou.

Voltando pra casa, entrei no ônibus lotado das 18h - eram tantas vidas, tantos rostos e tantas bocas, que suas histórias ultrapassavam dois que dialogavam e misturavam-se no ar, chegando aos ouvidos daqueles que se agarravam da barra metálica e fria para não cair no mar de gente.
Até mim, chegou a conversa de duas adolescentes sem rosto, apenas voz.
Ela tinha saído com ele na última sexta. Ele prometeu ligar.
Já era quarta e o telefone ainda não tocou.

A voz trêmula mostrava insegurança - e se ele não ligar?
Tive vontade de dar braçadas contra a maré, chegar até ela e responder a sua pergunta - se ele não ligar, ligue.

Não tive tempo de alcançá-la antes de chegar ao ponto final, mas queria que ela soubesse que a vida é curta para despejar a responsabilidade de ação no outro.
Ele não ligou, mas ela tinha o número.

Até quando as mulheres vão ter medo de discar?

terça-feira, 26 de agosto de 2014

Tatuagem não é coisa de mulher

Na entrevista de trabalho, perguntaram se ela tinha tatuagem.
Ela, meio acuada pelo olhar ineroxável do entrevistador, desviou do assunto. Diante da bifurcação entre dizer a verdade e erguer um cartaz enfatizando qualidades, rumou pela segunda estrada – mas a pilha de certificados não bastou para cobrir a tinta que infiltrara em seu corpo para sempre.

No primeiro encontro, ele perguntou se ela tinha tatuagem.
Ela, meio alterada pelas garrafas vazias acumuladas no balcão de alumínio que refletia seus olhos já vermelhos, desviou do assunto.
Ele foi logo dizendo que era conservador e que gostava de mulheres delicadas – tatuagem era coisa agressiva. Tatuagem não combina com mulher.
Ela tentou, mais uma vez, gritar suas qualidades até ficar rouca – mas enorme emaranhado de fios que desenrolavam em bom papo não bastou para cobrir a tinta que gravara em seu corpo uma história particular.

No almoço de domingo, eles perguntaram se ela tinha tatuagem.
Ela, já inundada de preconceito, não desviou do assunto – tinha tatuagens. No plural.
Fez questão de sentir o calor dos raios de sol chegando até seus desenhos eternos quando, ao erguer a blusa, refletiu todos eles nos olhares daqueles que teimavam em fechar os olhos para a beleza  ali presente.

Para ela, nada combina tão bem quanto um bocado de tinta e a pele de uma mulher. Ela gosta mesmo é de tinta – no papel, nas paredes urbanas grafitadas, nos livros, nos poemas apaixonados escritos em guardanapos e no corpo da mulher.

Deitada embaixo de agulhas que coloriam a terceira extensão da sua personalidade cravada na epiderme, ela engoliu todas as críticas que, desde o primeiro desenho, manteve presa na garganta e soltou um grito silencioso em forma de poesia na pele – grito pessoal fincado no corpo.

Ela não desviou mais do assunto quando é questionada sobre ter tatuagem. Hoje ela desvia dos preconceituosos e segue caminho em direção daqueles que enxergam a beleza feita de tinta – aqueles para os quais ela não precisa gritar qualidades para esconder seus desenhos, mas que mantêm os olhos abertos para vê-los brilhar livres de tampões.

Eu sou ela. Com duas tatuagens e espaço de sobra para muitas outras.
E ela pode ser tantas.

Tatuagem não é coisa de mulher. É coisa de mulher, homem - coisa de gente.

Gente que sente e sente tanto que transborda para além da superfície do corpo, despejando tinta preta e colorida como rastro daquilo que já viveu ou que quer viver.

quarta-feira, 20 de agosto de 2014

Nós, inteiros que somos, não aceitamos metades

23h05, ela chega e pede uma daquelas bebidas coloridas.
O garçom pergunta se está esperando alguém, ela sorri e balança a cabeça numa negativa sem pesar.
23h36 e no copo só resta o som de vazio subindo pelo canudo.
23h50, já dentro do carro, aperta o play naquele CD gasto do The Doors, “Touch me” é a primeira música.

É no caminho de volta para casa, vento no rosto, que ela sente a liberdade do quase-voar, quase-flutuar. Caminhar centímetros acima do chão.
Chega em casa e não tem ninguém para abrir a porta – ela mesma gira a maçaneta, a chave daquele interior é só dela e, ainda assim, ao entrar, não há vazio algum.
Ela sente medo daqueles que, por dormirem esparramados na cama de um só, dizem ter coração vazio. Apesar de ter apenas uma cadeira ocupada na hora do jantar, o coração que bate transborda para além dela mesma.

A descoberta de que o coração nasce por inteiro e, na vida, só nos resta encontrar alguém para deixá-lo mais bonito, causa medo.
Medo que golpeia homens e mulheres que encontram corações completos no meio do caminho.

Ela não entendia porque ninguém aparecia para abrir a porta quando chegasse e, então, entendeu que a maioria das pessoas prefere a ilusão de um coração vazio a aceitar que o outro já é inteiro.
A música era “End of The Road”, Eddie Vedder concordava com ela.

“I won't be the last
I won't be the first
Find a way to where the sky meets the Earth.”

Seu céu encontrou a Terra quando sentiu o peito estufar ao pensar em tudo que guardava no coração. Era tanto que não sobrava espaço para o vazio.
Tirou os fones de ouvido e, junto deles, a pressão de não ter com quem dividir a metade daquele pingente que viu na vitrine do shopping dias atrás. 

Medo - essa neblina que nos impede de enxergar as maravilhas de não ter a obrigação de completar o outro.
Estar ali para unir dois inteiros, não duas metades.
Medo de não ser necessário, de não se precisar da presença, do afeto, do toque.
Medo de que o outro ande com seus próprios passos e nos esqueça no caminho.

Perdem os que tem medo de quem sabe-se completo.
Perde a chance de viver uma vida sem medo – estar junto pelo simples fato de estar.


Ela, que caminhou até o quase-fim da estrada para fazer a descoberta, percebeu que o fim era seu começo – agora só ia abrir a porta da sua casa quem não tivesse medo de plenitude.

quinta-feira, 14 de agosto de 2014

As aparências enganam - era o que cantarolavam por aí aos sete mares

Sempre ouvi que as aparências enganam, mas resolvi sondar-lhe o íntimo. Achar lá dentro delas coisa superior às que eram ditas em farrapos de ideias soltos e, ao mesmo tempo, unidos de boca em boca.

As aparências, pobrezinhas, são apenas nosso exterior e, após anos de busca, não consegui encontrar provas concretas de que elas desejam nos enganar - na descida ao subsolo do homem, de olhos muito abertos para examinar cuidadosamente cada degrau em busca de uma evidência, cheguei ao fundo de mãos vazias.

Se somos enganados e as aparências não objetivam tal trapaça, quem pode ser considerado o culpado das nossas frustrações senão nós mesmos?  Difícil desenovelar tais incongruências.

Aparências não enganam, nós é que insistimos em depositar no outro tudo aquilo que idealizamos.

Olhamos a fachada, cerquinha branca e jardim florido.
Somos convidados a entrar, abre-se a porta da sala de estar e enxergamos os bibelôs e a decoração impecável – mas é no subsolo que se encontra toda a sujeira.
Camada após camada, chega-se à pele tal como ela é.

Insistimos em permanecer no térreo, arrumando as almofadas da maneira como mais nos agrada. Fantasiamos um cenário – persiste essa mania terrível de moldar o outro ao nosso olhar.
Enquadrar personalidades de acordo com perspectivas singulares é, no mínimo, enfaixar os olhos e permanecer na escuridão.

Por fora, aparentemente, todos são aquilos que nossos olhos querem ver.
Precisamos viver no inferno, mergulhar nos subterrâneos para conhecer quem o outro realmente é. Precisamos descer as escadas do térreo para avaliar ações que não poderíamos entender aqui em cima.

O subsolo tem poeira, ar denso difícil de respirar – é preciso coragem para enxergar a sujeira do outro. Coragem para arrastar os móveis, empilhar caixas antigas e limpar o cômodo – só deixar o que significa. Deixar o que cresceu, conservou.
Poucos tem coragem, mas quem a tem conhece a sensação única de vislumbrar de forma nítida o verdadeiro “eu” daquele que nos é apresentado pela vida.

Nosso olhar, treinado para ver apenas o que lhe convém, torna-se perspcaz após a faxina. O olhar perspcaz, coisa sempre rara, vê o que passa despercebido à maioria desatenta – vê o que o outro tem de pior.
É sempre entranhado no pior que se encontra o mais bonito – no meio do caos da sujeita, um ouvido fino captará acordes que não afetam ouvidos distraídos.

Chegar ao subsolo do outro, afastar a cortina fuliginosa, perder-se nas minúcias e, ainda assim, persistir em ficar e ajudar na arrumação do cômodo para depois usufruir junto do conseguido: isso é amor.

Portanto, chega de taxar as aparências de mentirosas.

Elas podem trapacear às vezes, mas, quase sempre, somos nós mesmos que empurramos o lixo para baixo do tapete e criamos uma imagem surreal dos que nos rodeiam.

Ninguém nasceu para agradar nossas idealizações – que saibamos conviver com o outro tal como ele é e deixemos as aparências em paz cumprindo sua única função: mostrar o exterior superficial como convite para mergulharmos no infinito em que o outro finca suas raízes.