Sempre ouvi que as
aparências enganam, mas resolvi sondar-lhe o íntimo. Achar lá dentro delas
coisa superior às que eram ditas em farrapos de ideias soltos e, ao mesmo
tempo, unidos de boca em boca.
As aparências,
pobrezinhas, são apenas nosso exterior e, após anos de busca, não consegui
encontrar provas concretas de que elas desejam nos enganar - na descida ao
subsolo do homem, de olhos muito abertos para examinar cuidadosamente cada
degrau em busca de uma evidência, cheguei ao fundo de mãos vazias.
Se somos enganados e as
aparências não objetivam tal trapaça, quem pode ser considerado o culpado das
nossas frustrações senão nós mesmos?
Difícil desenovelar tais incongruências.
Aparências não enganam,
nós é que insistimos em depositar no outro tudo aquilo que idealizamos.
Olhamos a fachada,
cerquinha branca e jardim florido.
Somos convidados a
entrar, abre-se a porta da sala de estar e enxergamos os bibelôs e a decoração
impecável – mas é no subsolo que se encontra toda a sujeira.
Camada após camada,
chega-se à pele tal como ela é.
Insistimos em
permanecer no térreo, arrumando as almofadas da maneira como mais nos agrada.
Fantasiamos um cenário – persiste essa mania terrível de moldar o outro ao
nosso olhar.
Enquadrar
personalidades de acordo com perspectivas singulares é, no mínimo, enfaixar os
olhos e permanecer na escuridão.
Por fora,
aparentemente, todos são aquilos que nossos olhos querem ver.
Precisamos viver no
inferno, mergulhar nos subterrâneos para conhecer quem o outro realmente é.
Precisamos descer as escadas do térreo para avaliar ações que não poderíamos
entender aqui em cima.
O subsolo tem poeira,
ar denso difícil de respirar – é preciso coragem para enxergar a sujeira do
outro. Coragem para arrastar os móveis, empilhar caixas antigas e limpar o
cômodo – só deixar o que significa. Deixar o que cresceu, conservou.
Poucos tem coragem, mas
quem a tem conhece a sensação única de vislumbrar de forma nítida o verdadeiro
“eu” daquele que nos é apresentado pela vida.
Nosso olhar, treinado
para ver apenas o que lhe convém, torna-se perspcaz após a faxina. O olhar
perspcaz, coisa sempre rara, vê o que passa despercebido à maioria desatenta –
vê o que o outro tem de pior.
É sempre entranhado no
pior que se encontra o mais bonito – no meio do caos da sujeita, um ouvido fino
captará acordes que não afetam ouvidos distraídos.
Chegar ao subsolo do
outro, afastar a cortina fuliginosa, perder-se nas minúcias e, ainda assim,
persistir em ficar e ajudar na arrumação do cômodo para depois usufruir junto
do conseguido: isso é amor.
Portanto, chega de taxar
as aparências de mentirosas.
Elas podem trapacear às
vezes, mas, quase sempre, somos nós mesmos que empurramos o lixo para baixo do
tapete e criamos uma imagem surreal dos que nos rodeiam.
Ninguém nasceu para
agradar nossas idealizações – que saibamos conviver com o outro tal como ele é
e deixemos as aparências em paz cumprindo sua única função: mostrar o exterior
superficial como convite para mergulharmos no infinito em que o outro finca
suas raízes.