Escolher é abrir mão de todo o
resto – e isso dói.
A Ana, que já viveu mais de sete
décadas, disse que, quando começou a conhecer o mundo, as opções eram poucas –
quase toda sua vida já havia sido determinada. Sabia que o ensino fundamental
serial o ponto final da sua vida escolar, seu futuro noivo já a esperava na porta e a
casa que habitaria após o casamento já estava construída mesmo antes do seu
nascimento.
A Ana não tinha dúvidas. Ela
seguiu o caminho traçado.
O tempo passou e a terra batida
deu origem ao asfalto. O percurso tornou-se rápido, ágil e cheio de
bifurcações. O campo florido – e nem por
isso absolutamente agradável, que a Ana percorreu calmamente originou gigantes
de cimento. Hoje é preciso correr para não ser massacrado.
Eram duas da manhã e seus olhos
teimavam em arder abertos. A chuva caía fina lá fora e o desespero espessava
aqui dentro. Tocava “The Velvet Underground” nos fones de ouvido e ela só
conseguia pensar nas oportunidades que a vida dá – e, consequentemente,
naquelas que lhe são roubadas.
Foram tantos relacionamentos
quebrados, tantos caminhos iniciados e outras tantas portas de saída
escancaradas. Seria covardia? Teria ela problemas com coisas inacabadas?
“Run, run, run” era a letra da
música, Velvet já podia prever sua ânsia de chegar a algum lugar ou, na pressa,
a lugar nenhum. Pause. Era preciso parar, respirar em silêncio – seria todo
hiato perda de tempo?
A vida moderna é cheia de
possibilidades, e, na maioria das vezes, dizemos isso com alegria. Podemos
seguir para onde quisermos, tomar um trem e viajar o mundo. O mundo, nos dias
de hoje, deixou a exuberância de lado e tornou-se bolinha de isopor pintada de
azul – é fácil percorrê-lo por inteiro da tela de um computador.
São tantos lugares, tantas
pessoas, tantos olhares e tantas bocas.
As novidades são tantas que
escorrem entre os dedos – fluída. Queremos todas elas.
O celular quebrou? Compramos
outro. O namoro esfriou? Caçamos outro. Consertar tornou-se verbo em desuso.
A Ana disse que fica assustada
com tanto caos. Na época dela, pessoas custavam a jogar fora cacarecos e
sentimentos e, hoje, ela diz que, diante dos seus olhos, a montanha de lixo
quase chega ao céu. Olha para o seu futuro próximo, situado no azul do
infinito, ela confessa ao meu ouvido: “Tenho medo que meus netos não saibam o significado
do valor das coisas.”
Eu, que não conheço seus netos,
imaginei todos os netos do mundo. Aqueles que não agarram as coisas com força, mas
as tocam superficialmente para logo deixar as mãos livres – querem sentir os
tantos “tantos” que a vida oferece.
Não escolhem, querem tudo ao
mesmo tempo. Escolher é abrir mão de todo o resto – e isso dói. Esquecem que a
dor de deixar uma oportunidade partir cura-se logo com a alegria de colocar a
outra, então, escolhida em redoma de vidro - não mais praticando o toque finito,
mas entranhando em tudo aquilo que deixamos ficar.
Mais vale conhecer as entranhas
da própria vida que a superfície de todos os oceanos.