domingo, 31 de agosto de 2014

Pensamento é tesouro de um só

No caminho da vida, a alma encontra outras mil e, raras as vezes, o encontro é forte o suficiente para carregar a marca da batida mesmo quando a estrada da outra trilha para além-olhos, lugar que não se vê daqui. 
Algumas dessas almas que nos atropelam têm passos lentos, percorrem grande porção do caminho ao nosso lado; outras, apressadas, correm para o além-olhos e, quando olhamos para o lado, só respiramos o rastro do poeira deixado por sua partida. 

A velocidade dos passos daqueles que entrelaçam seus dedos com os nossos em algum momento da trajetória é imprevisível, assim como o conteúdo da caixa lacrada que ela carrega como bagagem logo abaixo dos cabelos e, em alguns momentos, sob o peito, acompanhando o vai-e-vem do pulsar do coração. 
A caixa que, de tantos pensamentos, transborda pelos vincos, é fábrica de surpresas - mistura heterogênea de quereres, gostares, pensares, amares. E, mesmo que o outro abra uma fresta para que espiemos o mundo de sentimentos que existe em seu interior, ainda assim seria impossível abraçar o infinito de memórias que ela carrega.

Pensamento é o eu-abstrato. Eu que não se pode ver. 
E, por ser eu, primeira pessoa do singular, não satisfaz a curiosidade do plural. 

Por muito tempo quis saber o que tinha dentro da caixa daqueles que esbarravam em mim e, por muitas vezes, dei de cara com um cadeado maior que minha intromissão - muitos dos quais tentei arrombar à força. 
Caixa de pensamentos com cadeado quebrado perde o encanto. Sorte daqueles que descobrem que a curiosidade é o que mantém a vontade de deixar o outro caminhar junto.
Não dá pra saber se esse outro deseja entrelaçar os dedos com os seus na mesma intensidade que suas mãos desejam ser conduzidas, assim como não podemos prever quão rápidos serão seus passos - caminho de surpresas, mas são elas as responsáveis pelo encantamento: o não saber o que está por vir e seguir juntos, vencendo o medo a cada passo, para o além-olhos de dois - lugar que não se vê daqui.
Mas, para quem vai junto, não existe mais aqui, só o lá. 

quarta-feira, 27 de agosto de 2014

Ele disse que ia ligar. E não ligou.

Voltando pra casa, entrei no ônibus lotado das 18h - eram tantas vidas, tantos rostos e tantas bocas, que suas histórias ultrapassavam dois que dialogavam e misturavam-se no ar, chegando aos ouvidos daqueles que se agarravam da barra metálica e fria para não cair no mar de gente.
Até mim, chegou a conversa de duas adolescentes sem rosto, apenas voz.
Ela tinha saído com ele na última sexta. Ele prometeu ligar.
Já era quarta e o telefone ainda não tocou.

A voz trêmula mostrava insegurança - e se ele não ligar?
Tive vontade de dar braçadas contra a maré, chegar até ela e responder a sua pergunta - se ele não ligar, ligue.

Não tive tempo de alcançá-la antes de chegar ao ponto final, mas queria que ela soubesse que a vida é curta para despejar a responsabilidade de ação no outro.
Ele não ligou, mas ela tinha o número.

Até quando as mulheres vão ter medo de discar?

terça-feira, 26 de agosto de 2014

Tatuagem não é coisa de mulher

Na entrevista de trabalho, perguntaram se ela tinha tatuagem.
Ela, meio acuada pelo olhar ineroxável do entrevistador, desviou do assunto. Diante da bifurcação entre dizer a verdade e erguer um cartaz enfatizando qualidades, rumou pela segunda estrada – mas a pilha de certificados não bastou para cobrir a tinta que infiltrara em seu corpo para sempre.

No primeiro encontro, ele perguntou se ela tinha tatuagem.
Ela, meio alterada pelas garrafas vazias acumuladas no balcão de alumínio que refletia seus olhos já vermelhos, desviou do assunto.
Ele foi logo dizendo que era conservador e que gostava de mulheres delicadas – tatuagem era coisa agressiva. Tatuagem não combina com mulher.
Ela tentou, mais uma vez, gritar suas qualidades até ficar rouca – mas enorme emaranhado de fios que desenrolavam em bom papo não bastou para cobrir a tinta que gravara em seu corpo uma história particular.

No almoço de domingo, eles perguntaram se ela tinha tatuagem.
Ela, já inundada de preconceito, não desviou do assunto – tinha tatuagens. No plural.
Fez questão de sentir o calor dos raios de sol chegando até seus desenhos eternos quando, ao erguer a blusa, refletiu todos eles nos olhares daqueles que teimavam em fechar os olhos para a beleza  ali presente.

Para ela, nada combina tão bem quanto um bocado de tinta e a pele de uma mulher. Ela gosta mesmo é de tinta – no papel, nas paredes urbanas grafitadas, nos livros, nos poemas apaixonados escritos em guardanapos e no corpo da mulher.

Deitada embaixo de agulhas que coloriam a terceira extensão da sua personalidade cravada na epiderme, ela engoliu todas as críticas que, desde o primeiro desenho, manteve presa na garganta e soltou um grito silencioso em forma de poesia na pele – grito pessoal fincado no corpo.

Ela não desviou mais do assunto quando é questionada sobre ter tatuagem. Hoje ela desvia dos preconceituosos e segue caminho em direção daqueles que enxergam a beleza feita de tinta – aqueles para os quais ela não precisa gritar qualidades para esconder seus desenhos, mas que mantêm os olhos abertos para vê-los brilhar livres de tampões.

Eu sou ela. Com duas tatuagens e espaço de sobra para muitas outras.
E ela pode ser tantas.

Tatuagem não é coisa de mulher. É coisa de mulher, homem - coisa de gente.

Gente que sente e sente tanto que transborda para além da superfície do corpo, despejando tinta preta e colorida como rastro daquilo que já viveu ou que quer viver.

quarta-feira, 20 de agosto de 2014

Nós, inteiros que somos, não aceitamos metades

23h05, ela chega e pede uma daquelas bebidas coloridas.
O garçom pergunta se está esperando alguém, ela sorri e balança a cabeça numa negativa sem pesar.
23h36 e no copo só resta o som de vazio subindo pelo canudo.
23h50, já dentro do carro, aperta o play naquele CD gasto do The Doors, “Touch me” é a primeira música.

É no caminho de volta para casa, vento no rosto, que ela sente a liberdade do quase-voar, quase-flutuar. Caminhar centímetros acima do chão.
Chega em casa e não tem ninguém para abrir a porta – ela mesma gira a maçaneta, a chave daquele interior é só dela e, ainda assim, ao entrar, não há vazio algum.
Ela sente medo daqueles que, por dormirem esparramados na cama de um só, dizem ter coração vazio. Apesar de ter apenas uma cadeira ocupada na hora do jantar, o coração que bate transborda para além dela mesma.

A descoberta de que o coração nasce por inteiro e, na vida, só nos resta encontrar alguém para deixá-lo mais bonito, causa medo.
Medo que golpeia homens e mulheres que encontram corações completos no meio do caminho.

Ela não entendia porque ninguém aparecia para abrir a porta quando chegasse e, então, entendeu que a maioria das pessoas prefere a ilusão de um coração vazio a aceitar que o outro já é inteiro.
A música era “End of The Road”, Eddie Vedder concordava com ela.

“I won't be the last
I won't be the first
Find a way to where the sky meets the Earth.”

Seu céu encontrou a Terra quando sentiu o peito estufar ao pensar em tudo que guardava no coração. Era tanto que não sobrava espaço para o vazio.
Tirou os fones de ouvido e, junto deles, a pressão de não ter com quem dividir a metade daquele pingente que viu na vitrine do shopping dias atrás. 

Medo - essa neblina que nos impede de enxergar as maravilhas de não ter a obrigação de completar o outro.
Estar ali para unir dois inteiros, não duas metades.
Medo de não ser necessário, de não se precisar da presença, do afeto, do toque.
Medo de que o outro ande com seus próprios passos e nos esqueça no caminho.

Perdem os que tem medo de quem sabe-se completo.
Perde a chance de viver uma vida sem medo – estar junto pelo simples fato de estar.


Ela, que caminhou até o quase-fim da estrada para fazer a descoberta, percebeu que o fim era seu começo – agora só ia abrir a porta da sua casa quem não tivesse medo de plenitude.

quinta-feira, 14 de agosto de 2014

As aparências enganam - era o que cantarolavam por aí aos sete mares

Sempre ouvi que as aparências enganam, mas resolvi sondar-lhe o íntimo. Achar lá dentro delas coisa superior às que eram ditas em farrapos de ideias soltos e, ao mesmo tempo, unidos de boca em boca.

As aparências, pobrezinhas, são apenas nosso exterior e, após anos de busca, não consegui encontrar provas concretas de que elas desejam nos enganar - na descida ao subsolo do homem, de olhos muito abertos para examinar cuidadosamente cada degrau em busca de uma evidência, cheguei ao fundo de mãos vazias.

Se somos enganados e as aparências não objetivam tal trapaça, quem pode ser considerado o culpado das nossas frustrações senão nós mesmos?  Difícil desenovelar tais incongruências.

Aparências não enganam, nós é que insistimos em depositar no outro tudo aquilo que idealizamos.

Olhamos a fachada, cerquinha branca e jardim florido.
Somos convidados a entrar, abre-se a porta da sala de estar e enxergamos os bibelôs e a decoração impecável – mas é no subsolo que se encontra toda a sujeira.
Camada após camada, chega-se à pele tal como ela é.

Insistimos em permanecer no térreo, arrumando as almofadas da maneira como mais nos agrada. Fantasiamos um cenário – persiste essa mania terrível de moldar o outro ao nosso olhar.
Enquadrar personalidades de acordo com perspectivas singulares é, no mínimo, enfaixar os olhos e permanecer na escuridão.

Por fora, aparentemente, todos são aquilos que nossos olhos querem ver.
Precisamos viver no inferno, mergulhar nos subterrâneos para conhecer quem o outro realmente é. Precisamos descer as escadas do térreo para avaliar ações que não poderíamos entender aqui em cima.

O subsolo tem poeira, ar denso difícil de respirar – é preciso coragem para enxergar a sujeira do outro. Coragem para arrastar os móveis, empilhar caixas antigas e limpar o cômodo – só deixar o que significa. Deixar o que cresceu, conservou.
Poucos tem coragem, mas quem a tem conhece a sensação única de vislumbrar de forma nítida o verdadeiro “eu” daquele que nos é apresentado pela vida.

Nosso olhar, treinado para ver apenas o que lhe convém, torna-se perspcaz após a faxina. O olhar perspcaz, coisa sempre rara, vê o que passa despercebido à maioria desatenta – vê o que o outro tem de pior.
É sempre entranhado no pior que se encontra o mais bonito – no meio do caos da sujeita, um ouvido fino captará acordes que não afetam ouvidos distraídos.

Chegar ao subsolo do outro, afastar a cortina fuliginosa, perder-se nas minúcias e, ainda assim, persistir em ficar e ajudar na arrumação do cômodo para depois usufruir junto do conseguido: isso é amor.

Portanto, chega de taxar as aparências de mentirosas.

Elas podem trapacear às vezes, mas, quase sempre, somos nós mesmos que empurramos o lixo para baixo do tapete e criamos uma imagem surreal dos que nos rodeiam.

Ninguém nasceu para agradar nossas idealizações – que saibamos conviver com o outro tal como ele é e deixemos as aparências em paz cumprindo sua única função: mostrar o exterior superficial como convite para mergulharmos no infinito em que o outro finca suas raízes.

sábado, 9 de agosto de 2014

Não sai na sexta à noite em busca de um amor

"Não se afobe, não, que nada é pra já.
O amor não tem pressa.
Ele pode esperar em silêncio
Num fundo de armário
Na posta-restante
Milênios, milênios no ar." - cantou Chico em Futuros Amantes. 

Preferia músicas que mantêm meus olhos abertos àquelas que facilitam o seu fechar. Preferia o caminho mais rápido ao que me obriga a pensar na vida enquanto aguardo a fila do congestionamento diminuir. 
Gostava mesmo é de jantares prontos em três minutos e, de preferência, que já viessem em embalagens de consumo imediato para não perder tempo lavando o prato da refeição. 
O resultado era coisa mais importante no percurso. 
A ânsia pelo depois transbordava em mim. 

Meu prazer era fruto da rapidez.

Já tive pressa, sede insaciável e febre de saber o que estaria por vir, mas coloquei freios nos pés. Caminhando lentamente é possível olhar ao redor, colher as flores do caminho e sentir o perfume de cada uma delas. 
Hoje dou mais valor aos momentos do que à posição dos ponteiros do relógio que insiste em me apressar. 
Saio do trabalho, coloco o meu CD do "Great Lake Swimmers" e sinto o som de cada uma das cinco cordas do banjo. Pego o caminho mais longo e já vou pensando no jantar, a cada metro que a fila de carros avança lentamente eu 
incluo um item na lista de compras - o jantar vai demorar, mas, quando sair, seu gosto será de satisfação com uma pitada de paciência - e é essa pequena porção de paciência que faz toda a diferença.

Hoje é sexta-feira e fiquei em casa. 
A noite mal começou e já me colocaram no grupo dos desanimados. Afinal, como vou encontrar o amor da minha vida se ficar em casa na sexta-feira à noite? Absurdo. 

Absurdo mesmo é essa pressa por encontrar alguém para completar aquilo que já nasceu cheio. 
Assim como o jantar, que quanto mais tempo no fogo, melhor o gosto; amor e pressa não combinam. Vale esperar o bolo assar por inteiro, demore o tempo que for, a tirá-lo do forno e comer massa crua, que alimenta na hora e faz um mal danado depois.
Haja estômago para aguentar o doce do começo e a azia que chega logo em seguida!
Com o amor é assim: espera e paciência. 

O meu bolo não assou por completo nessa sexta-feira. Take it easy. 
Coloquei o seriado e o sono em dia. 

Cansei de comida feita pela metade, bolo mal assado e café frio.
Meu paladar agora só aceita um banquete por completo, daqueles que nos fazem repetir inúmeras vezes - nem que, para saboreá-lo, eu tenha que assistir algumas temporadas de Game of Thrones sozinha. 

terça-feira, 5 de agosto de 2014

Quem é que vai nos libertar dos grilhões do medo?

Ela, terceira pessoa, poderia ser primeira se eu estivesse caminhando por ali. A diferença entre a terceira e a primeira é um pulo de duas casas, dois terrenos baldios.Ela, com seus 17 anos, pensara ser livre. Caminhava numa direção definida por ninguém além dela mesma, para chegar aonde quisesse.  Mas, não por acaso ou destino, esbarrou numa barreira de 10 homens que a impediram de continuar seu caminho. Arrastaram-na sobre a terra, deixando um vinco preenchido por lágrimas - rio no qual o seu sossego desaguou, sendo levado para longe.

O longe é lugar desconhecido, não se sabe como chegar. Lá mora o sossego de muitas outras terceiras pessoas de 17 anos. Sem contar o daquelas com mais ou menos anos – afinal, não há limite de idade para perder aquilo que nos faz brilhar: a paz.Terceira pessoa do singular não consegue lutar com terceira pessoa do plural. É preciso ajuda.

Já disseram uma vez para gritar “Fogo!” caso fosse atacada. Do contrário, ninguém sairia para ajudar. Um imóvel vale mais que uma vida?
A justificativa: eu não quero me envolver. Cada um com seus problemas.

Enquanto eles, pedras humanas que interceptam o caminho daqueles que tentam chegar em casa após o sol fechar os olhos e encerrar o expediente, trabalham em terceira pessoa, nós erramos a conjugação e trabalhamos individualmente, em primeira, não do plural, mas do singular.

Eu gosto de olhares. Gosto de olhar o outro e construir pontes – não de concreto ou passíveis de incendiar, mas daquelas que fogo nenhum destrói. Sendo assim, torço para chegar o dia em que não será preciso alarmar um incêndio para receber ajuda. E mais: não será preciso mendigar uma mão para soldar os cacos de dignidade espalhados pelo terreno baldio escolhido como berço de mais um estupro – seja em Bauru ou qualquer outra cidade. 

Quantas outras “elas” serão arrastadas deixando rastro de sujeira moral para que estas pedras sejam retiradas do caminho?

No final de semana, o posto de terceira pessoa do singular foi ocupado por uma jovem de Bauru, 17 anos - nos próximos dias não se sabe quem irá tomar o seu lugar. “Você”, pronome de tratamento que tem uso verbal restrito a segunda pessoa, pode transformar-se em primeira e fazer de tal situação um relato pessoal.

Não quero caminhar com grilhões de medo nos pés - mas, me pergunto, quem é que tem a chave para abri-los e nos libertar dessa angústia de caminhar só em ruas que, teoricamente, levariam até a segurança do lar?

Meu desejo não é lá tão impossível. Afinal, eu só quero o caminhar leve com a certeza de que as barreiras humanas, que insistem em obstruir nossos caminhos, foram destruídas por completo.