terça-feira, 30 de setembro de 2014

Um dia disseram para eu me colocar em meu lugar. Eu fui.

Hoje à tarde, quando saía do trabalho, deparei-me com um casal almoçando em uma mesa sob o sol. Parei ao lado do carro e comecei a busca pelas chaves dentro da bolsa. Enquanto percorria todas as repartições daquela que continha uma boa parte dos meus dias, não pude deixar de ouvir o diálogo entre os dois – que mais parecia um monólogo, visto que ela, cabisbaixa, não tinha direito de resposta.
O momento foi breve, mas o suficiente para que a frase no imperativo chegasse aos meus ouvidos.

Coloque-se no seu lugar.

sábado, 27 de setembro de 2014

Amor é janela aberta para o sol entrar

A alma é névoa presa em vitrais e, quando ama, quer escapar por entre as frestas para misturar-se com outra que exala daquele que a recebeu de janelas abertas. 
Amor é mistura de sopros.

Numa dessas andanças, dei com um senhor que, sentado em sua cadeira, mãos sobre os joelhos, dizia estar esperando a morte chegar. Morrer, para ele, era reencontro. 
Praguejava por ter perdido as forças das pernas e, ainda assim, permanecer com a memória impecável. 
Clarice era o nome dela. 
Impossível esquecer a grafia e a entonação daquela voz ao apresentar-se pela primeira vez.
O som do nome dela entrou em seus ouvidos sem pedir licença. Instalou-se em sua mente sem que lhe fosse concedida permissão. Conhecê-la trouxe um vendaval que quase trincou seus vitrais. Forçou o cadeado. Bateu forte contra os grades de proteção.
Da segunda vez que a viu, abriu o maior sol. Céu aberto. Ele, protegido pelo blackout das grossas cortinas, permaneu no escuro - enxergava o brilho dela, mas relutou. Não a deixou entrar.
Ela, apesar das tempestades que já inundaram seus cômodos, era janela aberta. Sentia as correntes de ar em seus cabelos. Respirava todo o sopro da alma daquele que olhava pelo parapeito. 
Queria engolir cada pedaço de dentro para degustar o doce e o amargo que o outro poderia lhe causar.

domingo, 21 de setembro de 2014

Por um fio

Era sábado de manhã. 
Abriu os olhos e o dente, ainda de leite, estava ali dançando em sua gengiva. Junto ao balanço daquele que logo não faria parte do seu eu, chegou o medo de perdê-lo.
Passou dias sentindo sua presença, antes nunca percebida. Sua língua, sem querer, encontrava a peça bamba que tantas vezes fizera parte de seu sorriso e, ao encontra-la, sentia a dor - de saber que logo tal fio de raiz seria desfeito e aquele pedaço dela seria preenchido de nada. 
Espaço vazio circundado de outros que não poderiam substituí-lo. A substituição, que viria com a chegada do permanente, aconteceria no tempo certo. Até lá, espaço desabitado. 
Ela poderia simplesmente amarrar o famoso fio ao redor do dente, prendê-lo à porta e arrancá-lo de uma só vez. Mas preferia senti-lo em sua boca por mais um tempo, ainda que incômodo - era bom lembrar que ele estava ali quando tentava comer um dos biscoitos que sua avó preparava para o café da tarde. 
Por mais que tivesse se esforçado para que dança continuasse, sem remédio um dia ela parou. 
A cortina de sangue encerrou o espetáculo e, o protagonista, que estivera por um fio, naquele dia perdeu sua última ligação. Jazia ali em suas pequenas mãos molhadas de lágrimas.
Dormiu com seu companheiro de risos sob o travesseiro e, na manhã seguinte, ao passar a língua e sentir o vazio bem na frente da parte superior, chorou.

terça-feira, 16 de setembro de 2014

Azul é liberdade repousada

Leve mar leve esses medos dela. 

Era sempre noite naquela casa de muitos cômodos, todos preenchidos por mobiliários antigos e, em grande parte, sem utilidade. Era escuridão ainda que os ponteiros do relógio já tivessem passado pelo número doze pela segunda vez.
A casa, solitária, carregava histórias de gerações. Olhava o mar distante, para lá daquela montanha de pedras que se acumulavam sob seus pés. 
Era no distante que havia a leveza das ondas. Da janela do quarto do segundo andar, o castanho dos olhos dela assistia a um espetáculo de liberdade. E como elas eram livres!  
Vão e vêm, batem nas pedras, desfazem sua forma, viram espuma rasa e reinventam um novo ciclo sem perder sua essência, água que se confunde com firmamento. Azul arraigado como aquele preso à íris dele. 

Invejava o mar aberto. Sobre o mar não tem construção, é ele que se dispõe sobre as pedras.
As pedras dela eram sob, as da imensidão azul, sobre.
Ela cansou de apoiar-se na janela, fechou a cortina e desceu as escadas. Permaneceu tanto tempo ali, pisoteando aquele carpete carcomido pelo tempo, que os pilares do primeiro andar confundiam-se com suas pernas assustadas demais para o próximo passo. 
Talvez a casa fosse ela mesma. Isolada por seus medos e entulhos da vida de outros que carregava junto ao peito.

domingo, 14 de setembro de 2014

Passos de Dança

Primeiro, o tropeço. Em seguida, a dança.

Uma história sobre como a arrogância, quando ausente, faz o outro querer ser mais.

Ela não sabia sincronizar os pés em passos de dança. Em meio ao salão lotado, grudou as mãos trêmulas na cadeira - eu podia sentir o cheiro de medo mais forte que o aroma de seu perfume. 
Ele era um pé-de-valsa, como costumavam chamar aqueles que decoravam o palco com suas extravagâncias. 

Foi observando-o dançar que o coração deixou de ser só dela. 

segunda-feira, 8 de setembro de 2014

Construir é estar disposto

Essa história de que os opostos se atraem é pedra no sapato. 

Fernando Anitelli, poeta do O Teatro Mágico, cantou em Realejo: 
"Os opostos se distraem 
Os dispostos se atraem."

Talvez seja isso que funcione como imã: estar disposto. 
Enquanto você procura algum oposto para completar seu Yin-Yang outros mil dispostos estão ali, não para completar, mas somar e transbordar - e você, cego(a) que é, não vê. 
A dualidade das coisas, complemento dentro de si, é encaixe. 
Encaixes são limítrofes: são o que são, formas estáticas, sem surpresas. 

Estar disposto não é sinônimo de encaixe perfeito - as formas podem não se combinar. Mas, na dança fluida de um seguir os passos do outro para encontrar equilíbrio, os limites são esquecidos: só resta o desejo e a vontade de construir uma forma que extravase e seja particular de dois que almejaram estar ali. 

Estar disposto é isso - encarar as surpresas e fugir do pronto para erguer o próprio edifício, seja ele meio aberto, meio fechado, ou aberto por inteiro. 
No final, não importa se é oposto, importa se há vontade de começar a construção e seguir até a etapa final - acabamento e árvore na entrada para desfrutar da calmaria do continuar da trajetória. 

Um mundo por vez

É assim que as boas intenções morrem - você sente que simplesmente não adianta. Que, por mais que cave, nunca será suficiente para tapar o buraco. 
Aos poucos a gente se anestesia. Ou, como outros preferem pensar: o sofrimento vai deixando a gente menos sensível, como os pés que criam casca grossa de andar descalços. Na prática, começamos a fechar os olhos, fingir que não vimos.

Num desses fechares de olhos, pulamos o outro caído no asfalto da avenida como se ele fosse uma poça inconveniente que sujaria nossos sapatos.

As pessoas têm mania de me dizer que não podem resolver sozinhas o problema da desigualdade social. E eu tenho mania de enxergar um problema maior que a própria desigualdade: o não fazer nada só porque podemos pouco. 
A gente pode muito se coloca boas intenções, não nas horas vagas, mas naquilo que somos e fazemos todos os dias. 

Concordo com os céticos que gritam palavras de pessimismo: boas intenções diárias não resolvem o problema, imensamente maior que nossa existência individual. Não resolvem. 
Boas intenções não vão erradicar o prefixo da desigualdade do mundo, elas, particulares que são, mexem com um mundo por vez. E é assim que a solução chega e as boas intenções permanecem vivas: transformando um mundo por vez. 

Boa intenção é líquido raro combinado com gentileza.
E gentileza é daquelas coisas simples que não pedem tempo, dinheiro ou preparação - é conjunto de cores que colorem sem esforço.  

Hoje, ao não praguejar o carrinho de papel reciclado que atrapalhava o trânsito e fazia os ponteiros do relógio voarem, tornando meu atraso ainda maior, eu colori dois mundos - o meu e o dele, que, ao fazer o seu trabalho, recebeu um sorriso para variar os olhares de desaprovação.
É deste modo, colorindo um mundo por vez, que o cinza da desigualdade pode vir a ser diluído em outras tonalidades - amarelos de sorrisos, azuis de olhares tranquilos, verdes de boas palavras. 
Gentileza é arco-íris - trilha de cores. 

quarta-feira, 3 de setembro de 2014

Poesia nas miudezas dos dias



Depois de tanta secura, choveu. E, diante dessa noite inundada, afirmo: um dos maiores prazeres da vida, daqueles invisíveis aos olhos desatentos que teimam em ignorar os detalhes de tudo o que é simples - e não por isso menos grandioso, é dormir com o barulho de gota d'água na janela. 

Água que cai para lavar a alma sem molhar, música que bate no vidro e acalma os ouvidos acostumados ao som cinza das cidades. 
Cabe tanta poesia dentro de um pingo que cai e, ainda assim, aqueles de olhar fixo no óbvio, queixam-se quando o tempo começa a fechar. 



Por mais noites com chuva da janela e quartas que comecem limpas - livres da poeira acumulada dos dias.