domingo, 30 de novembro de 2014

Fidelidade é sorrir até a comida esfriar

Gosto de restaurantes - pela comida e pelas companhias indiretas que arranjamos ao escolher uma mesa qualquer. Gosto também de observar pessoas, não para lhes invadir a privacidade, mas para conhecer uma infinidade de mundos diferentes, singularizados em cada ato.

Hoje entrei num restaurante e sentei entre dois casais. A maneira como conversam durante a refeição pode dizer muito sobre o relacionamento. Um deles conversava e ria; misturado ao aroma do prato sobre a mesa, era possível sentir cheiro de amor vivo. Os outros dois, sentados na mesa ao lado, comiam em silêncio. Um olhando para o prato, outro para o celular - a comida, pela aparência, estava em ótimo estado, o amor foi que estragou. 

Outro dia, numa conversa de bar, tentou-se definir o conceito de infidelidade. Dentre as tantas respostas e definições, encontrei a minha ao encarar o silêncio do casal da mesa ao lado. 

Infidelidade é deixar o amor estragar e seguir o resto da vida olhando para o prato enquanto comem, sem rir nem conversar. E assim morrem, fiéis ao prato e infiéis à vida e à possibilidade do amor.

Meu pedido chegou antes de poder chegar à mesa deles e recolher a peteca de um jogo solitário - peteca que é lançada e o outro não devolve cai no chão. 
O silêncio e o hiato de sorrisos é a prova de que já não há jogo algum; e também a prova de que infidelidade não é só beijos, abraços e pensamento em outra pessoa. Infidelidade é continuar desviando o olhar para o prato; é deixar a peteca cair. 

Para o casal que sorria, mais um chopp; para os outros dois da mesa ao lado, a conta logo após a última garfada. 

quinta-feira, 27 de novembro de 2014

Dois tempos

Abri a janela pela manhã e não entrou raio de sol, senti sopro de vento úmido dos lábios escuros de um céu chuvoso. Depois de tanta seca, o sol decidiu descansar e estirar-se por entre as nuvens, conduzindo feixes tímidos sobre parapeitos de metal.
Quando eu era pequena, o tempo era mais organizado - tinha calor no verão, em Abril os casacos já começavam a sair do armário para dar uma arejada, aliás, eu podia usar casaco pesado no inverno. O frio seguia firme e forte, fazendo com que no meu aniversário, um dia depois das festas de São João, o cantar ao redor do bolo soltasse fumaça das bocas que me desejavam felicidades. O frio, persistente, só começava a dar trégua em Setembro.

terça-feira, 11 de novembro de 2014

A vida é muito curta para que o sal não encontre os lábios

Encontrei um certo alguém que jurou nunca ter chorado depois de certa idade. 
O mesmo alguém jurou que isso o tornava forte - chorar é coisa de criança mimada. 

Eu sempre gostei de lágrimas e tenho pena daqueles que não se permitem sentir o salgado contido em cada gota de alegria ou decepção. Daqueles que seguram o choro, impedindo o entusiasmo, paixão, e tristeza de escorrer pela face, marcando o caminho com o rastro de sal que chega à boca ao final do percurso. 
Não imagino como seja a vida dos que obstruem os olhos para que não sejam reflexo d'água. Não deformam a expressão um só vez, mantendo o sorriso amarelo de sempre estampado logo abaixo do olhar cinza e inflexível. 

domingo, 9 de novembro de 2014

Dança de fogo e água

Somos copo meio cheio, meio vazio.
Possuímos no fundo da alma o nada e o abundante em equilíbrio. 

Quando copo meio vazio, externalizamos todo o nada guardado no baú de sentimentos  - estresse, raiva, impaciência e grosseria. Somos metade, meio vazios. 
A outra metade, no fundo do recipiente, contém líquido manso como o brilho das estrelas em noites tranquilas. 

Quando copo meio cheio, transbordamos o abundante. Os melhores tesouros que carregamos vibram, querem fugir do dentro que os bloqueiam, atingir o outro que os provocaram.

As pessoas têm o poder de despertar o nada ou o tudo em nós. 

Há muitos céus no íntimo de cada um, um céu para cada encontro da travessia. Porque o céu é local de reencontro com coisas que amamos e o tempo nos roubou -  no céu está guardado tudo aquilo que a memória um dia amou. 
O meu céu pode ser meio cheio, meio vazio; estar cheio de nada, ou vazio de tanto transbordar.
Pode ser um céu de fogo que, dizia Neruda, é a substância dos poetas.
Pode ser um céu de incêndio, que destrói poesias. 

Fogo enfeitiça os olhos com suas chamas. 
Há uma linha tênue entre a labareda mansa e a combustão descontrolada. As chamas começam a dançar frente aos olhos, os objetos vão perdendo os contorno e, ao final, tudo é fumaça. 
Se a faísca no céu dançará lentamente ou perderá o controle, depende da intensidade do sopro parido dos lábios do outro. 

As pessoas têm o poder de acender o fogo de sentimentos aconchegantes e de incendiar o céu, parte delas dentro de nós. Têm o poder de remar rumo à terceira margem do rio, que é a saudade de Riobaldo; e também o poder de seguir o fluxo das águas sem deixar o gosto da volta.

O fogo e a água que completa a metade do copo dançam conforme a música que exala a alma do outro - se harmoniosa, calmaria haverá; se desafinada, só o tumulto.