quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

A culpa não é sua




Eu carrego o mundo nas costas. Minha coluna já não aguenta tanta pressão. Ontem mesmo, quase surtei e, naquele momento, senti-me culpada por isso. Engoli o choro e repeti o mantra. Logo vai passar.

O começo de um relacionamento é quarto escuro. Esbarramos em uma porta e a fechadura reluzente nos chama atenção. Entramos. Com medo de fazer qualquer movimento brusco, esperamos de mãos estendidas. Mas a curiosidade amolece os músculos rígidos de tensão. Começamos, então, a tatear o ambiente em busca de respostas.
Nesse processo de enxergar com as mãos, tropeçamos na bagunça do outro. Nosso dedinho encontra uma quina qualquer. Hematomas misteriosos surgem de gavetas abertas pelo caminho. E, apesar das dores alucinantes, a imagem formada em nossa mente é sempre algo belo.
Sem vislumbrar o clarão que ilumina a verdadeira face do outro, criamos a paisagem que nosso coração deseja habitar.  Decidimos, de súbito, alugar aquele quarto por tempo indeterminado.

quinta-feira, 5 de novembro de 2015

Cegos diante do mundo



A garagem do meu prédio faz qualquer um desistir de sair de casa logo após concluída a batalha entre um carro sem direção hidráulica e pilares apertados. Lembrei que o leite acabou assim que tirei a chave do painel. Decidi ir andando. No meio do caminho, uma jovem passeando com o cachorro. O fio que prende na coleira em uma das mãos e o celular na outra. Ela, na verdade, não tinha saído de casa. Não enxergava as ruas pelas quais passava. O cão passeava sozinho. Chegando ao mercado, que é pequeno e recebe sempre as mesmas pessoas, encontrei uma mãe e seu filho. O filho dentro do carrinho, também no celular. Olhos fixos na tela. Lembrei da época de criança. Eu disparava pelos corredores, curiosa para descobrir novos rótulos e convencer minha tia a comprá-los, para que eu pudesse comprovar se o sabor era tão bonito quanto a imagem da caixa. O menino, com o celular nas mãos, não enxergava as prateleiras. Não fazia barulho no mercado. A mãe estava sozinha. 

Já no caixa, enquanto esperava minha vez, vasculhei minha bolsa à procura do meu próprio aparelho. Não encontrei. Devo ter deixado cair no carro enquanto lutava para estacioná-lo. Quatro pessoas na minha frente. Calculei 10 minutos de espera. Todas estavam olhando para tela luminosa. A porta do mercado fica de frente para rua, então, sem escolha, tive que a encarar durante a espera. É angustiante perceber que estamos sozinhos com tantas pessoas ao redor. Passou um sorveteiro. Daqueles que tocam gaita para chamar a atenção da vizinhança. Ele estacionou o carrinho frente aos nossos olhos. Soprou a gaita insistentemente. Ninguém desviou o olhar. Sem fôlego, seguiu o seu caminho. Rumo à outra porta em busca de atenção. Quando chegou a minha vez, comentei que há muito não via um desses sorveteiros na rua. A moça do caixa ergueu as sobrancelhas. Ele passava por ali e, consequentemente, pela minha rua, todo santo dia.

quinta-feira, 29 de outubro de 2015

Quantas pessoas deixamos de conhecer por inteiro pelo medo de mergulhar?



Pearl Jam tem uma das músicas mais lindas do mundo. Talvez ela goste tanto de Sirens quanto daquele vinho barato que entope as prateleiras do supermercado, ou prefira os dois juntos – perfeita sintonia. É claro que mantem isso em segredo. Um fato trancafiado na caixa das coisas que só são reais se aliadas à solidão.
Ela também gosta de ouvir Stone Temple Pilots enquanto corre, apesar de achar as canções um tanto quanto desconexas demais. Interstate Love Song combina com seu suor. Talvez porque compartilhe o sentimento de que, naquele momento, respirar é, de fato, a coisa mais difícil a ser feita.
Outro dia, encontrou, perdido no porta-luvas do carro, um CD antigo e riscado pelo tempo. Daqueles que a gente grava em uma tarde ociosa e esquece de nomear com a caneta azul de ponta grossa. Era Radiohead. A primeira música, Karma Police, fez com que ela lembrasse do quanto gostava da banda em 2006. Talvez outras tenham ocupado o lugar de preferidas. Mas a memória daquele piano ainda estava ali.
Naquela caixa de segredos onde se encontra o gosto pela mistura entre Pearl Jam e vinho barato, ela esconde também todos os CDs do Coldplay, ainda que resista a admitir sua paixão pela banda quando é questionada sobre The Scientist.

quinta-feira, 15 de outubro de 2015

Calma, professor



Calma, professor, hoje o som é de aplauso, não de bomba. Eu sei que você está acostumado a levar porrada dentro e fora da sala de aula, mas não precisa se assustar. Os gritos não são para te desqualificar, são para agradecer. Não precisa arregalar os olhos de espanto. Hoje é dia de festa, professor. O clima não anda bom, concordo. Mas é hoje que todos lembram da sua importância. Não quer aproveitar e sentir o gosto de ser valorizado?

segunda-feira, 12 de outubro de 2015

As pessoas que matamos ao longo da vida



A secadora girava, fazendo aquele zunido que nos leva para longe. Colocou-se frente à maquina e, hipnotizada pelos movimentos circulares, mergulhou naquele buraco negro. Foi sugada pelo ralo gigante que escoa as águas do pensamento.
Em seu universo, a morte tinha outro significado. As crianças são as únicas  que falam desse assunto com naturalidade. Não são como os adultos, que não sabem o que fazer com a palavra e procuram sempre não dizê-la. O morrer, muitas vezes, não está ligado ao fim da vida. Tudo depende do referencial.

quarta-feira, 7 de outubro de 2015

Simone



O centro de Catanduva parece nunca ter mudado. Desde quando posso me lembrar, o trânsito é lento entre a rua Minas Gerais e a Brasil. As pessoas tumultuam o calçadão nos sábados de manhã e na época do Natal. 
O passo dos catanduvenses sempre foi apressado, desde quando consigo me lembrar. Seguimos um fluxo. Seguimos olhando fixamente para o objetivo final. Traçamos a rota antes mesmo de sair de casa.

O centro de Catanduva parece nunca ter mudado, mas muda todos os dias.

segunda-feira, 5 de outubro de 2015

O acordar do domingo



No domingo, o acordar é maravilhoso. Natural. Os olhos abrem quando sentem vontade. Os ouvidos folgam do despertador. O sol esconde-se por entre as nuvens, respeitando o descanso merecido. No acordar de domingo, sentimos o gosto da liberdade. As pernas esticam e encolhem quantas vezes forem necessárias para causar o tédio e nos fazer levantar. Enroscam-se nas pernas do outro, convencendo-o a ficar por mais dez minutos. Ou algumas horas.

O acordar de domingo é nossa chance de escolha tão desejada. A eficiência da cafeína torna-se questionável. Os limites da manhã são esticados até um almoço tardio, sem correr o risco de estourar ao esbarrar em prazos que atropelam o passar do dia.

terça-feira, 22 de setembro de 2015

A espera


Esperar é como plantar um jardim. A angústia que antecede uma florada. Para que o jardim exista, é preciso terra. Mas, antes de tudo, sonho. As coisas existem primeiro do lado de dentro. Esperamos, então, para que elas possam também ser reais no mundo além de nós. Do lado de fora. 
Um jardim é, portanto, sonho que virou realidade. 
Eu ainda não tenho a terra, mas dentro de mim, ainda que pássaro sem asas, posso ouvir o canto do desejo. Esperar pela terra para começar a plantar é rebentar de dentro para fora, de tanto que transborda aquilo que já vive internamente. Esperar é preparar as sementes. E toda preparação é incerta. Não se sabe, afinal, se é flor ou se é erva-daninha dentro do grão e toda incerteza, assim como a espera, é espinho que incomoda antes de nascer – machuca o passar dos dias.

"O Lula é um ladrão, mas a Dilma? Ah, a Dilma é uma vagabunda!"




A questão não é política. A fila do pão pode ser reduto dos mais assombrosos absurdos presentes nos diálogos cotidianos. 

Quase nunca crio coragem para desperdiçar alguns minutos do pós-expediente na espera pela próxima fornada. Ontem senti saudade da tradição de família e fui em busca do pão francês das 18h. Na fila, intermediei o encontro de dois conhecidos: um homem de meia idade e uma mulher com olhos cansados de fitarem a mesma cena diariamente. Entediados. Cumprimentaram-se. Falaram sobre os filhos que moram longe. Não se importaram com a intrusa. Aliás, não desviaram o olhar para encarar aquela que respirava o ar que já passara pelas suas narinas, centímetros abaixo do seu campo de visão – como fazem com muitos que não atingem o topo da pirâmide econômica e social. 
Amenidades à parte, a política colocou-se em pauta. Torci para que o padeiro me presenteasse com o cheio de pão fresco, fazendo-o dissipar e preencher o espaço entre mim e os dois participantes da conversa. Nunca desejei com tanta intensidade uma fornada de pães. É melhor que o estômago esteja abarrotado de água, farinha e fermento a inundá-lo com o que viria a escutar – um discurso tão ácido quanto ulcerante. 

Um brinquedo, repetições e a vida como ela é




O fim e o começo nunca andam só. Estão sempre de mãos dadas, caminhando tranquilamente rumo à eternidade. Eles precisam um do outro para existir. Sem o fim, não há começo. E, se o começo não se torna real, o fim, consequentemente, não poderá, mais tarde, entrar em cena. 
Feito a bailarina de Andersen que, com suas sapatilhas vermelhas, nunca parava de dançar, fugimos incansavelmente de um possível e temporário estado letárgico dos acontecimentos da vida. Mal chega o fim, logo queremos um novo começo - não há espaço para ser inerte. Todos calçamos as sapatilhas vermelhas de Andersen. 

Quando um toque de gratidão vale mais que o Sucesso inalcançável

Nunca fui amante íntima de textos filosóficos, muito menos defendi com unhas e dentes o conjunto de escritos de filósofos e pensadores limitados por seus nomes de batismo e títulos de publicações. Alguns aqui, outros acolá, marcaram vivências e transformaram perspectivas. Retalhos soltos, matéria-prima para a tecelagem da colcha do meu próprio eu. Mas um trecho de santo Agostinho, particularmente, pegou-me ainda enquanto estudante do ensino médio e caminha ao meu lado na tomada de decisões até hoje, no quase-fim do ensino superior. 
Eis o trecho: "Algumas coisas são para serem fruídas, outras para serem usadas, e outras ainda há que são para serem fruídas e usadas." 

Regras da boa convivência moderna: é proibido papear com o porteiro

Quando decidi sair de casa e enfrentar a odisseia de morar sozinha, não imaginei que, pelo percurso, seria curada de uma cegueira que acomete a muitos olhos. Com 17 anos a gente carrega bagagem pequena. Decidi alugar um apartamento de um só. Lugar unicamente meu. Lembro-me perfeitamente do primeiro instante que me vi ali, parada, frente à porta que meu pai acabara de fechar. O meu maior medo era não saber qual ônibus pegar para ir até a faculdade no primeiro dia de aula. Dormi de olhos abertos, repassando, mentalmente, o mapa ribeirão-pretano que havia recebido no ato da matrícula. Os ponteiros ainda precisavam trabalhar por duas horas inteiras, mas eu já estava de mochila nas costas. Meu prédio não tinha elevador. Desci os quatro lances de escada a passos largos. Receosa. Na portaria, uma máquina de refrigerantes, daquelas que ainda aceitam as já inexistentes moedas de um centavo.
Durante a mudança, a máquina de refrigerantes foi o que chamou minha atenção. Brilhava à noite, ofuscando o vidro do lado oposto. Vidro este que escondia o que aquela portaria tinha de mais precioso: o ser humano responsável por minha segurança. Olhei em direção àquele insulfilm sem rosto e meus olhos gritaram por socorro. A janela da guarita abriu e, junto dela, abriu-se um sorriso. O porteiro logo fez questão de perguntar se eu precisava de alguma informação. Foi o Marcos quem me ensinou a tomar o ônibus. Ele também me contou qual era o melhor e mais barato lanche da cidade e alertou sobre os bairros perigosos. Conferiu se minha porta estava fechada das primeiras vezes que deixei o apartamento para passar o final de semana em Catanduva e me deu broncas pelo vazamento da pia cozinha, que eu nunca tive tempo suficiente para arrumar.
A última lembrança de Ribeirão é feito foto. Dentro do carro carregado de mudanças e memórias, olho para trás e vejo aquele que foi meu lar. O Marcos estava lá. E foi o último a me dar tchau. Ciclo completo.

Carta pr'avó

Esse quintal já foi de terra batida com plantas espalhadas por todo canto. Costumava ter uma árvore aqui dentro, dizem até que era morada de muitos animais. No canto, perto da saída, uma comigo-ninguém-pode enorme. A vó dizia que matava só de relar a mão Lembro do dia que compramos a piscina. Só podíamos nadar se mantivéssemos em pé a promessa de não estragar nenhuma das plantas da vó Pina. Quando eu me transformava em cientista e fazia do quintal meu laboratório, lá vinha a vó Pina correndo conferir se todos os vasos estavam inteiros. 

quarta-feira, 4 de março de 2015

Hoje acordei com saudade de dar aula

Em 2011 descobri o sabor de estar à frente de uma sala de aula. Inexperiente e com medo da reação das pessoas naquelas cadeiras, assumi o compromisso de falar sobre uma das minhas grandes paixões: literatura.
Meu curso de graduação era integral e eu ministrava as aulas num cursinho comunitário no período da noite. Saia de casa às 7h da manhã e retornava quando a última dúvida daqueles que dedicaram um tempo para me ouvir fosse sanada - o ponteiro do relógio, muitas vezes, ultrapassava às 23h.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

O Término


Fitava a janela com olhos de outra época. Não fazia tanto tempo desde a última vez em que seus olhos encontraram aquele olhar castanho, mas o tempo é mesmo coisa relativa – parecia que uma vida toda havia se passado até então.

Os pensamentos diluíam como tinta num balde d’água – mistura de cores que dançam como véus no infinito translúcido.  O vermelho de um sorriso daquele dia que ela usava um vestido da mesma cor entrelaçava-se com o verde das mãos dele numa tarde de Janeiro sem prazo para acabar.