terça-feira, 22 de setembro de 2015

A espera


Esperar é como plantar um jardim. A angústia que antecede uma florada. Para que o jardim exista, é preciso terra. Mas, antes de tudo, sonho. As coisas existem primeiro do lado de dentro. Esperamos, então, para que elas possam também ser reais no mundo além de nós. Do lado de fora. 
Um jardim é, portanto, sonho que virou realidade. 
Eu ainda não tenho a terra, mas dentro de mim, ainda que pássaro sem asas, posso ouvir o canto do desejo. Esperar pela terra para começar a plantar é rebentar de dentro para fora, de tanto que transborda aquilo que já vive internamente. Esperar é preparar as sementes. E toda preparação é incerta. Não se sabe, afinal, se é flor ou se é erva-daninha dentro do grão e toda incerteza, assim como a espera, é espinho que incomoda antes de nascer – machuca o passar dos dias.

"O Lula é um ladrão, mas a Dilma? Ah, a Dilma é uma vagabunda!"




A questão não é política. A fila do pão pode ser reduto dos mais assombrosos absurdos presentes nos diálogos cotidianos. 

Quase nunca crio coragem para desperdiçar alguns minutos do pós-expediente na espera pela próxima fornada. Ontem senti saudade da tradição de família e fui em busca do pão francês das 18h. Na fila, intermediei o encontro de dois conhecidos: um homem de meia idade e uma mulher com olhos cansados de fitarem a mesma cena diariamente. Entediados. Cumprimentaram-se. Falaram sobre os filhos que moram longe. Não se importaram com a intrusa. Aliás, não desviaram o olhar para encarar aquela que respirava o ar que já passara pelas suas narinas, centímetros abaixo do seu campo de visão – como fazem com muitos que não atingem o topo da pirâmide econômica e social. 
Amenidades à parte, a política colocou-se em pauta. Torci para que o padeiro me presenteasse com o cheio de pão fresco, fazendo-o dissipar e preencher o espaço entre mim e os dois participantes da conversa. Nunca desejei com tanta intensidade uma fornada de pães. É melhor que o estômago esteja abarrotado de água, farinha e fermento a inundá-lo com o que viria a escutar – um discurso tão ácido quanto ulcerante. 

Um brinquedo, repetições e a vida como ela é




O fim e o começo nunca andam só. Estão sempre de mãos dadas, caminhando tranquilamente rumo à eternidade. Eles precisam um do outro para existir. Sem o fim, não há começo. E, se o começo não se torna real, o fim, consequentemente, não poderá, mais tarde, entrar em cena. 
Feito a bailarina de Andersen que, com suas sapatilhas vermelhas, nunca parava de dançar, fugimos incansavelmente de um possível e temporário estado letárgico dos acontecimentos da vida. Mal chega o fim, logo queremos um novo começo - não há espaço para ser inerte. Todos calçamos as sapatilhas vermelhas de Andersen. 

Quando um toque de gratidão vale mais que o Sucesso inalcançável

Nunca fui amante íntima de textos filosóficos, muito menos defendi com unhas e dentes o conjunto de escritos de filósofos e pensadores limitados por seus nomes de batismo e títulos de publicações. Alguns aqui, outros acolá, marcaram vivências e transformaram perspectivas. Retalhos soltos, matéria-prima para a tecelagem da colcha do meu próprio eu. Mas um trecho de santo Agostinho, particularmente, pegou-me ainda enquanto estudante do ensino médio e caminha ao meu lado na tomada de decisões até hoje, no quase-fim do ensino superior. 
Eis o trecho: "Algumas coisas são para serem fruídas, outras para serem usadas, e outras ainda há que são para serem fruídas e usadas." 

Regras da boa convivência moderna: é proibido papear com o porteiro

Quando decidi sair de casa e enfrentar a odisseia de morar sozinha, não imaginei que, pelo percurso, seria curada de uma cegueira que acomete a muitos olhos. Com 17 anos a gente carrega bagagem pequena. Decidi alugar um apartamento de um só. Lugar unicamente meu. Lembro-me perfeitamente do primeiro instante que me vi ali, parada, frente à porta que meu pai acabara de fechar. O meu maior medo era não saber qual ônibus pegar para ir até a faculdade no primeiro dia de aula. Dormi de olhos abertos, repassando, mentalmente, o mapa ribeirão-pretano que havia recebido no ato da matrícula. Os ponteiros ainda precisavam trabalhar por duas horas inteiras, mas eu já estava de mochila nas costas. Meu prédio não tinha elevador. Desci os quatro lances de escada a passos largos. Receosa. Na portaria, uma máquina de refrigerantes, daquelas que ainda aceitam as já inexistentes moedas de um centavo.
Durante a mudança, a máquina de refrigerantes foi o que chamou minha atenção. Brilhava à noite, ofuscando o vidro do lado oposto. Vidro este que escondia o que aquela portaria tinha de mais precioso: o ser humano responsável por minha segurança. Olhei em direção àquele insulfilm sem rosto e meus olhos gritaram por socorro. A janela da guarita abriu e, junto dela, abriu-se um sorriso. O porteiro logo fez questão de perguntar se eu precisava de alguma informação. Foi o Marcos quem me ensinou a tomar o ônibus. Ele também me contou qual era o melhor e mais barato lanche da cidade e alertou sobre os bairros perigosos. Conferiu se minha porta estava fechada das primeiras vezes que deixei o apartamento para passar o final de semana em Catanduva e me deu broncas pelo vazamento da pia cozinha, que eu nunca tive tempo suficiente para arrumar.
A última lembrança de Ribeirão é feito foto. Dentro do carro carregado de mudanças e memórias, olho para trás e vejo aquele que foi meu lar. O Marcos estava lá. E foi o último a me dar tchau. Ciclo completo.

Carta pr'avó

Esse quintal já foi de terra batida com plantas espalhadas por todo canto. Costumava ter uma árvore aqui dentro, dizem até que era morada de muitos animais. No canto, perto da saída, uma comigo-ninguém-pode enorme. A vó dizia que matava só de relar a mão Lembro do dia que compramos a piscina. Só podíamos nadar se mantivéssemos em pé a promessa de não estragar nenhuma das plantas da vó Pina. Quando eu me transformava em cientista e fazia do quintal meu laboratório, lá vinha a vó Pina correndo conferir se todos os vasos estavam inteiros.