quinta-feira, 5 de novembro de 2015

Cegos diante do mundo



A garagem do meu prédio faz qualquer um desistir de sair de casa logo após concluída a batalha entre um carro sem direção hidráulica e pilares apertados. Lembrei que o leite acabou assim que tirei a chave do painel. Decidi ir andando. No meio do caminho, uma jovem passeando com o cachorro. O fio que prende na coleira em uma das mãos e o celular na outra. Ela, na verdade, não tinha saído de casa. Não enxergava as ruas pelas quais passava. O cão passeava sozinho. Chegando ao mercado, que é pequeno e recebe sempre as mesmas pessoas, encontrei uma mãe e seu filho. O filho dentro do carrinho, também no celular. Olhos fixos na tela. Lembrei da época de criança. Eu disparava pelos corredores, curiosa para descobrir novos rótulos e convencer minha tia a comprá-los, para que eu pudesse comprovar se o sabor era tão bonito quanto a imagem da caixa. O menino, com o celular nas mãos, não enxergava as prateleiras. Não fazia barulho no mercado. A mãe estava sozinha. 

Já no caixa, enquanto esperava minha vez, vasculhei minha bolsa à procura do meu próprio aparelho. Não encontrei. Devo ter deixado cair no carro enquanto lutava para estacioná-lo. Quatro pessoas na minha frente. Calculei 10 minutos de espera. Todas estavam olhando para tela luminosa. A porta do mercado fica de frente para rua, então, sem escolha, tive que a encarar durante a espera. É angustiante perceber que estamos sozinhos com tantas pessoas ao redor. Passou um sorveteiro. Daqueles que tocam gaita para chamar a atenção da vizinhança. Ele estacionou o carrinho frente aos nossos olhos. Soprou a gaita insistentemente. Ninguém desviou o olhar. Sem fôlego, seguiu o seu caminho. Rumo à outra porta em busca de atenção. Quando chegou a minha vez, comentei que há muito não via um desses sorveteiros na rua. A moça do caixa ergueu as sobrancelhas. Ele passava por ali e, consequentemente, pela minha rua, todo santo dia.