terça-feira, 13 de dezembro de 2016

Marcela não me representa

Eu prometi. Prometi que deixaria de pegar no pé de Marcela Temer. Fiz a promessa de não mais julgar sua postura virginal saída dos catálogos de propaganda dos anos dourados, aqueles em que as mulheres eram vistas como penduricalhos decorativos e frágeis. Eu prometi. Juro que prometi. Mas aí, veio o “Criança Feliz” e aquele papo de pureza infantil, que, aliás, combina muito com Marcela. Falaram também sobre a importância de cada cidadão desde a gestação, fazendo demonstração clara da postura governamental contrária à legalização do aborto. Caramba! Eu estava me segurando. Eu juro. Até que Marcela se colocou como representante da categoria feminina. Não deu para segurar.

Deixa voar

O calor chegou com tudo. É suor. Dor de cabeça. Falta de concentração. Irritação. Escola pública. Ventilador anos 80. Metal. Zunido infernal. Não há aula que seja agradável em ambiente assim. Moléculas agitadas. Mentes inquietas. Quem é que quer saber sobre Manifesto Antropofágico quando lá fora faz mais de 34°C?
O jeito é sair da sala de aula. Abandonar as carteiras alinhadas. Sentar no chão. Espalhar a quentura em espaço aberto. Falar sobre o contexto histórico do Modernismo em roda. Sem formalidades.
Uns deitaram, outros sentaram-se à maneira que lhes fosse confortável. A aula tornou-se um bate-papo. Conversa gostosa. Sentimos até uma brisa mansa. Relembramos que há outras maneiras de compartilhar saberes. Colocamos em prática a tal da educação não-formal. Foi a única aula do ano em que eu não precisei chamar a atenção da turma uma só vez.
Até quando, professores, vamos insistir em engaiolar nossos alunos?
Já é madrugada e a dor de cabeça continua martelando. Não me dá trégua, desde que inventaram essa mania de ler na tela do computador. Tomei um daqueles remédios efervescentes de gosto amargo, arrisquei a Neosa e até apelei para fórmulas mais potentes. Nenhuma melhora - a visão continua embaçada e a concentração se escondeu por detrás dos pontos luminosos que surgem a cada piscada. Me disseram que era caso de oculista. Deixa para lá. Fica comprovado: alopatia, nesses casos pós-modernos, não está com nada. O maior inimigo do estresse, da insônia ou de qualquer um dos males causados por essa dinâmica e costumes insanos é, ainda, a boa e velha taça de vinho acompanhada daquele combo de 6 horas de música instrumental, sons da natureza e sequências sonoras relaxantes do mundo zen, que está disponível no Youtube.
Eu até tentei deixar a tecnologia de lado, mas, veja bem, ele gosta de perseguir o ser humano. Ou seria o contrário? Deixa pra lá. Vou aproveitar o hiato da dor, entre o começo e o final da garrafa. Logo ela volta.

Ruína da admiração

Hoje vi uma amiga muito querida chorar. Não pelo fim de seu namoro de muitos anos, mas pela ruína da admiração. Um relacionamento, na verdade, nunca acaba no término. Ficam resquícios da perda flutuando no vazio, como a barra daquele vestido de algodão vagabundo que começa a desfiar. Pouco a pouco, fio a fio, deixa o rasgo à mostra. A costura, liga entre este e aquele pedaço de pano, é desfeita, mas nunca de um dia para o outro - leva tempo até desenlaçar-se toda. Resta aquele ardor no estômago, que teima em aparecer minutos antes de dormir.
Felizmente, nós não precisamos sentir orgulho e admiração por todas as pessoas que passam pela nossa vida. É possível escolher quem vai e quem fica.
Afastar-se, em alguns casos, é um ato de coragem. Queria poder pegar essa amiga querida pela mão e mostrar-lhe que é grande o número daqueles que guardam arrependimentos sentimentais. Enxugar-lhe as lágrimas e, como um mantra, dizer: os atos pouco admiráveis do seu ex-namorado não são culpa sua. Ele é responsável pelos próprios erros.
Eu já me envolvi com um cara que, durante o relacionamento, tirava fotos das mulheres de sua turma de faculdade e compartilhava em um grupo de homens. Descobri. Doeu. Quando reclamei, fui tachada de louca. Senti-me culpada. Mulher, quando exige respeito, logo tem sua saúde mental questionada. Mas, aprendi: não sou culpada pelas atitudes miseráveis do outro. E você, fulana, sicrano, aquele ou aquela também devem ter histórias parecidas no currículo.
Quando um relacionamento acaba e você descobre que aquela pessoa não é quem você imaginou ser, não perca noites de sono e não se culpe pelo envolvimento. Não permita, em hipótese alguma, que os atos e ações de alguém que já não faz parte de sua vida diminuam sua felicidade.
Repita, repita e repita:
🌸 Eu não tenho culpa de ter me envolvido com alguém que deixei de admirar. Eu posso deixar de admirar. Não há nenhum problema em reconhecer a falta de admiração. Esse é, aliás, o sinal de que amadureci, revi meus conceitos e, hoje, não aceito menos respeito do que mereço receber 🌸

Bilhete da eternidade

E naquela segunda-feira chuvosa, de céu azul anil, você se foi. Foi o pôr-do-sol de nuvens carregadas mais bonito que eu já vi. O céu fez chover para escoar nossas angústias. E como choveu! Choveu por noventa anos.
Dizem que algumas pessoas, um tempo antes de morrer, afastam-se pouco a pouco. Tornam-se silenciosas, preparando os ouvidos daqueles que as amam. A voz vai ficando falha. Até calar.
Você desabrochou feito flor, vó. Abriu suas pétalas delicadas e voou. Foi cuidar de outros jardins. Semear, adubar e fazer florir o amor em nossos corações. Hoje, nasceu em mim a orquídea da cor do seu olhar.
Mágica na cozinha, deixou sabores. Temperou nossas vidas por noventa anos. Fez nosso paladar conhecer o lado bom da vida. Me ensinou que a cozinha italiana é a melhor do mundo. Minha saudade é só o lembrete de todo amor que compartilhamos.
Descansa, vó. Depois desses noventa anos, descansa. Sossega esses olhos. Cuida do nosso jardim. Continua me ensinando a enxergar a beleza dos outros. Transforma sua presença em cor. Pode ir.
Faço aqui uma promessa: vou continuar te fazendo sorrir. O mesmo sorriso que brotou quando você pegou meu primeiro livro em suas mãos já tão cansadas.
Vai, vó, mostra para o Universo a força das mulheres dessa família. Conta para os quatro cantos do mundo o quanto somos fortes. Eu fico, para continuar o que começamos juntas.
Ah! Como eu amei e amo você! Vá e leve minha gratidão por me ensinar a sentir assim.

Para meus alunos e alunas, - as palavras que eu gostaria de ter ouvido de meus professores quando prestei o ENEM e demais vestibulares pela primeira vez

Você pode falhar. Não tem nada de errado em falhar. Eu juro. Prometo que seu futuro é muito maior que qualquer prova de questões múltipla escolha. Confia em mim e, principalmente, em você.
Falta uma semana para o ENEM 2016. Nos dias 5 e 6 de novembro, milhões de brasileiros estarão confinados em uma sala quente qualquer. Hoje, uma aluna surtou. Rasgou o simulado. Chorou. Chutou a carteira. Não conseguiu acertar o número de questões que a fizeram acreditar ser aceitável. Não deu tempo. Cada tic-tac do relógio massacra a autoestima. Fora da sala, conversamos. Ela me disse que nunca havia acertado mais que 60% de qualquer prova. Os pais reafirmam que esperavam mais a cada resultado. Alguns professores dizem que é preguiça de estudar, outros já a colocaram no grupo dos casos perdidos. Essa aí não esbanja inteligência. Torcem para que escolha um curso com baixa nota de corte para contabilizar a aprovação nas estatísticas da escola.

No sábado, fiz cabelo, maquiagem e coloquei salto alto

No sábado, fiz cabelo, maquiagem e coloquei salto alto. Vesti decote e usei brincão. Coisas nada usuais. Quando finalizei a produção, soltei uma interjeição. Surpresa. Olhei no espelho e não me encontrei. Há tempos não destinava tanta energia para o externo. Aparência nunca foi meu forte. Exagerei no delineador e no batom para me sentir empoderada. Cresci alguns centímetros e enfrentei o chão irregular, segurando com toda força na minha autoestima, nem tão alta assim.
Já na festa, o espelho era outro e a sensação, a mesma. Não me encontrei. Logo tirei o salto, os cachos foram desfazendo, batom borrou e eu, com toda minha delicadeza, amarrei a barra do vestido para poder dançar melhor. Nesse momento, não sei se foram as luzes ou o som alto, estagnei e olhei ao redor. Pensei: como é que pode todas aquelas meninas estarem impecáveis às três da manhã? Sinto a mesma sensação na academia, quando percebo que, enquanto estou em um estado deplorável, as outras mulheres não suaram uma gota sequer. Não sei se danço demais, ou elas dançam de menos.

Tranças, penteados e a beleza dos aprenderes

Conheci a Jheniffer em uma das primeiras visitas ao Jardim Nicéia, um bairro da periferia de Bauru, durante o desenvolvimento do projeto de incentivo à leitura infantil (https://goo.gl/hUxTTw).
Nas primeiras rodas de leitura, ela mostrou-se uma criança de poucas palavras. Participou da atividade com a timidez típica dos desinteressados. Folheou os livros de forma apática. Quando questionei se ela já aprendera a ler, não fez que sim, nem que não. Desviou o olhar. Nessas idas e vindas ao bairro, ganhei sua amizade, que, quando acontece entre pessoas com grande diferença de idade, torna-se sinônimo de confiança.
Na última visita, era Dia das Crianças. Todos estavam agitados diante da sacola de doces e de toda a programação especial. Não deu para fazer a roda, ler em conjunto e contar histórias, então, sentei-me no banco e fiquei observando aquela alegria que teima em brotar dos sorrisos infantis. A mesma que, quando crescemos, perdemos o jeito e esquecemos como é que se faz. Para adultos, sorrir é, na maioria das vezes, difícil demais.
Jheniffer se aproximou e pediu para que eu lesse uma história. Fizemos um trato: eu leria, mas ela teria que me ajudar.

Alecrim e Manjericão

Morar em apartamento é dividir uma vida com tantas outras e, ainda assim, permanecer só. Para os italianos, a palavra appartamento, que é quase homógrafa a nossa, vem de appartare, que, na tradução, significa separar, colocar de lado. No meu edifício, são quatro números por andar. Duas portas coladas de um lado, outras duas do outro. Tão coladas que, de início, confundia-me as fechaduras. Faz 8 meses que me instalei naqueles poucos metros quadrados e, desde então, fiz pouco contato com vizinhos. Quase nenhum. Meus horários, sempre tão caóticos, fazem-me abrir e fechar a porta quando o silêncio já se aconchegou em cada sofá daqueles aposentos, acariciando os cocurutos cansados da rotina. Morar em apartamento é oportunidade de fazer as pazes com a solidão que, contraditoriamente, torna-se fiel e, constantemente, única companheira dos nossos dias - está sempre ali, fazendo lembrar que apenas alguns tijolos nos separam da vida ao lado, mas, apesar da proximidade, não há, naquele espaço, nenhuma voz para fazer par no diálogo.
Eu não sou de apartamentos. De silêncios. De appartare. A vida e suas circunstâncias é que me obrigam a aceitar um universo apartado e empilhado sobre outros. Enquanto não posso caminhar em chão de terra batida, o jeito é amenizar o exílio da natureza. Convidar cores, cheiros, temperos e vidas a entrarem porta adentro. Dizer-lhes que são bem-vindos, os novos hóspedes.
No feriado, recebi visita permanente de dois caras verdes vistosos, o manjericão e o alecrim, que me permitem, ao fechar os olhos, imaginar campo aberto e tempo fresco. O manjericão traz um pouco da Itália dos meus avós. O alecrim purifica meu ar, lembrando-me de que há, naquele aroma, algo ou alguém para me acompanhar.
Plantas, ervas e flores são o conforto que o coração precisa quando me dou conta que, naquela ambiente, sou a moça do 34, ele é fulano do 35 e, na frente, mora a senhora do 36. O remédio para a frieza dos números é a vida em suas incontáveis formas.
Para quem mora em apartamento, qualquer célula viva é um respiro no sufoco que a ausência traz.

"Amém" é vocábulo de muitos significados

Depois que perdi minha avó, passei a observar a relação entre outros netos, netas, avós e avôs com mais frequência e atenção, talvez como forma de amenizar a saudade. Vez em quando, vejo alguém mais jovem acompanhado de cabelos tão branquinhos. Olhos desinteressados. Celulares nas mãos. Esbravejando que estão atrasados. Sinto vontade de me aproximar e, de forma clichê e piegas, implorar para que aproveitem cada segundo. Dizer-lhes que o tempo escorre pelas mãos.
A presença só precisa do amanhã para virar passado.
Em uma mesa bistrô, o neto e sua avó. A garçonete traz o café de um e a jarra de suco do outro. A senhora agradece.

"Deus lhe abençoe."
O menino ri.


"Deus não existe, vó, caramba, já cansei de repetir isso."

Ela dá um sorriso sem graça, trêmulo e abaixa os olhos. Ele termina o suco e levanta-se. Diz que vai na frente. Deixa-a terminando o café sozinha na mesa estilo bistrô.

"Vai com Deus, meu filho"

"Que Deus, vó? Isso já está ficando chato."

Ela sorri com os olhos, como quem não se importa em engolir sapos para evitar conflitos. Os anos a ensinaram que nem só de flores são feitas as relações humanas. Resta-lhe tão pouco. Ela sabe. Não é justo contaminar seus preciosos minutos com o ácido das brigas.
Ele segue, ela fica. Logo, ordem inversa.
Eu não acredito neste Deus religioso e caricato. Não segui a religião que minha avó tanto queria e nunca repeti as orações que ela me ensinara quando criança. Ela nunca soube. 
Escolhi continuar dizendo "Amém" ao final de cada ligação e a cada despedida. Inclusive, na última. 
Quando aprofundei-me na problemática da religião e da fé, ela já estava no alto de seus oitenta anos. Oito décadas de devoção ao catolicismo e ao Deus que não me conquistou. Não havia mais tempo para discutir crenças. Só para sentir.


"Vai com Deus, fia", ela dizia.
"Amém, vó", eu respondia.
"Vou fazer uma novena para dar tudo certo." 


"Peço a Deus todos os dias", ela repetia. E eu acreditava. Não no sobrenatural, mas no amor. Acreditava tanto que fiz das palavras dela meu amuleto.
Quis com tanta força dizer para aquele neto que, em alguns momentos da vida, é preciso ceder, mas ele tinha pressa de viver. Correu para longe a passos largos. É essa urgência a responsável pelo distanciamento daqueles que já não acompanham nosso ritmo.
Eu não acredito neste Deus religioso e caricato, mas daria tudo para responder, de novo, "amém". Existem, pois, muitas formas de demonstrar amor. Algumas, mais metafísicas do que outras. 
Para mim, aquele Deus da minha avó não fez efeito. Apesar disso, ela me deu amor em forma de oração e, em troca, respeitei sua fé.


"Amém" é vocábulo de muitos significados e também pode ser sinônimo de "Amo e respeito você". As palavras, em suas diversas formas, têm poder de inflar ou murchar o existir do outro.
Crenças e ideologias à parte, chega o dia em que é preciso baixar a guarda para agradar o coração de quem te ama.

Lucíola

Lucíola, de José de Alencar, foi publicado em 1862. Conta uma história da década de 50 do século passado. Paulo conheceu Lúcia na Festa da Glória, despretensiosamente. Lúcia era cortesã de luxo, a prostituta mais cobiçada do Rio de Janeiro. Paulo, de acordo com Alencar, um jovem ingênuo, considerado o caminho da redenção de Lúcia. Em um dos encontros, Lúcia que, mais tarde, admitiu ser Maria da Glória, engravidou. Adoeceu por acreditar que seu corpo era sujo e morto, indigno da criança, consequência do preconceito moral e social que sofrera ao longo dos anos. 
Lúcia sofreu um aborto e, ante a recusa de tomar remédio para expelir o feto sem vida, faleceu de infecção. O aborto foi o castigo de Lúcia por ser mulher livre. Culpava-se. Culpavam-na. A morte, consequência metafórica de suas escolhas. 
José de Alencar matou sua cortesã e fez de Paulo um herói, que, desconsolado, recebeu apoio social pela perda do amor de sua vida. A história de Lúcia, suas batalhas para manter viva a família, que sofria de febre amarela, tornaram-se detalhes insignificantes da obra.

A história é da década de 50 do século passado. Hoje, centenas, milhares, milhões de Lúcias por ano. Morrendo como castigo. Abandonadas por suas escolhas. O pai, ainda herói. A bagagem de vida da mulher, sempre irrelevante.
Na ficção da primeira geração do Romantismo, Lúcia e Iracema ganharam desfechos trágicos. Na vida real, mais de um século depois, continuamos a tragédia. Matamos clandestinamente neste Brasil - ainda - idealizado.
No país romântico e machista de José de Alencar, a mulher não tem escolha.

1604


Nos meus primeiros anos em Bauru, morei naquele edifício. O mais alto da região. Décimo sexto andar. Um amontoado de lembranças que arranha-o-céu. Nas madrugadas em claro, olhava pela janela do quarto, aquela moldura metálica, em direção à sacada de onde escrevo essa nota melancólica de sexta à noite. Encarava-a como quem gostaria de ser no tempo depois deste. Enquanto amaldiçoava os ponteiros do relógio, que teimavam em atrasar o final de semana, imaginava o que se fazia dentro deste apartamento de azulejos azuis e luzes sempre tão acesas. 
Hoje, a luz do décimo sexto (re)acendeu, depois de tanto tempo. Tornou-se morada de nova vida. O único ponto luminoso sob as nuvens carregadas de saudade. E desta sacada que guarda eu que quisera ser, meu olhar encontra uma silhueta feminina na janela, fitando o infinito fim de tarde. Uma união do que sou com o que costumava ser. Daqui, penso: s(era) feliz a menina do 1604?

Quem foi minha mãe antes de mim?

Hoje é aniversário da minha mãe. Brigamos no domingo. Íamos ao cinema. Comemoraríamos a terça-feira noutro dia. Fiz uma lista de falhas maternas. Discursei sobre minhas expectativas não correspondidas. Não fomos. O filme foi exibido sem nossa presença. O meu domingo terminou sem ela. 
Enquanto dirigia de volta para Bauru, o temporal me fez desacelerar e colar as mãos no volante, tentando domar aquela pista encharcada. Diante de tudo o que havia dito, fiquei surpresa com o quanto ser mãe é também sinal de peso e dor. Para os filhos e para a sociedade, mãe é uma entidade feito fortaleza, daquelas muradas por grandes e inquebráveis blocos de concreto. Barreira que nos protege de todos os males e aguenta a ressaca do mundo. Mãe não tem folga e nem direito de ruir. Eu não daria conta, pensei. Ainda que tivesse 24 anos de experiência materna, como ela tem, falharia.

sexta-feira, 11 de novembro de 2016

Metades

Quarta-feira é dia de metades. Atenção cortada ao meio. Já esperamos o término da semana, na mesma medida em que o cansaço dos dias passados é amontoado num canto qualquer. Eu errei o caminho. Em um labirinto de rotatórias, dei de cara com uma rua sem saída. A Unesp esconde lugares só encontrados por aqueles que não querem ser vistos. Enquanto fazia a meia lua, pronta para retomar meu caminho, notei que eu era, naquele espaço, intrusa. Um casal fizera daquela rua mal cuidada o seu recanto. Entrelaçados de corpo e alma, sorriam em silêncio. Ignoraram o barulho do motor. Criaram uma redoma de paz ao redor. Tentei diminuir a aceleração - para não estourar o vidro que os isolava do mundo, mas também, de forma egoísta, para poder assistir por mais tempo aquela demonstração genuína de amor mútuo. Durante todo o momento em que os mantive em meu campo de visão, não trocaram nenhuma palavra. Não havia tempo para diálogos soltos. Ele sorria com os olhos e beijava-lhe a ponta do nariz. Ela abraçava-o como se a saudade fosse iminente ao descolar dos corpos. De repente, aquela grade enferrujada que servia de pano de fundo ganhou flores. Foi a declaração de amor mais linda que já vi. Desfeita de palavras e criada a partir dos silêncios que comportam os gritos paridos da essência que nos faz humanos.
Dei o braço a torcer. Há laços que não se apertam com palavras. Para existir, só precisam de um universo encaixado no intervalo entre dois olhares que, como imãs e sem porquês, não deixam afrouxar nossa fita colorida de cetim.

domingo, 16 de outubro de 2016

Conviver com crianças

Todos deveriam reservar alguns momentos para conviver com crianças. Guardar um tempo para uma boa conversa. Daquelas que exigem olhos nos olhos. Jogar-se ao chão para engrandecer-lhes. Crianças me ensinam muito! Ouso dizer: muito mais que doutores com os quais trombei pela trajetória da vida. 

Nem só borboletas moram no estômago

Tem soco que dói de dentro para fora, rasgando as vísceras em um movimento de vai-e-vem. 
O estômago fica feito copo d'água que efervesce uma daquelas pastilhas repletas de bolhas. Queima. Queima os olhos, esôfago e pulmões. 
A espuma, ora branca, ora nada, espanta as borboletas, sufocando-as. A falta de oxigênio amputa suas asas, que caem secas naquela bolsa digestiva. 
Os relógios giram ao contrário diante da asfixia, transformando-as em larvas rastejantes. Espalhando ovos prontos para eclodir em qualquer espaço dentro de nós. 
Um soco repentino. Infestação. Inquietação. Larvas forçando a saída por todos os poros; empilham-se em um quadro exposto no extremo oposto da beleza.

Da mágoa, acumulam reservas. Alimentam-se de lágrimas e revestem-se de frustração, formando casulos. Enclausuradas em fios de dor, tornam-se pupas. Aquietam-se. Digerem todos os coágulos que rodeiam o machucado da agressão. 
Têm poder cicatrizante, esses casulos. Diante deles, a efervescência, pouco a pouco, acaba. Cada vez menos gotícula espirram nos olhos, fazendo-os lacrimejar. 

Tão repentinas quanto o soco, emergem as borboletas de asas vistosas. Novas borboletas de asas vistosas tão vulneráveis à asfixia, como as anteriores. 
A vida é amontoado de ciclos.

quinta-feira, 1 de setembro de 2016

Emplasto anti-hipocondríaco



Brás Cubas era um menino levado. Endiabrado, como costumavam lhe chamar pelas costas. Fruto da sociedade burguesa, realizava todos os seus desejos, quer fossem plausíveis, quer não. Contou, em suas memórias póstumas, que, quando descontente, vingava-se, como fez com o pobre doutor Vilaça, na noite do jantar especial em comemoração à derrota de Napoleão. 
Brás Cubas teve uma vida de não realizações. Nada produziu, apenas consumiu. Pouco antes de falecer, agarra-se a uma ideia fixa: a criação de um emplasto anti-hipocondríaco, que, dizia, era alívio para a melancolia da humanidade. Já do outro lado do mundo, confessa a farsa - o real motivo da criação do medicamento era ver seu nome escrito nas caixinhas de remédio. Desejava, de alguma forma, ser eternizado, ainda que não houvesse feitos heroicos em sua biografia.
Machado o criou exatamente para demonstrar o vazio existencial da burguesia de sua época, marcada pela aparência e abandonada pela essência. Memórias Póstumas de Brás Cubas é o drama da irremediável tolice humana.

terça-feira, 23 de agosto de 2016

Doença só

Quando eu era pequena, dia de febre era sagrado. Permissão para não ir à escola. Ficar debaixo das cobertas, assistindo desenho animado no sofá em frente à televisão. Eu até gostava de ficar doente. Dor de garganta era quebra passageira da rotina. Oportunidade de receber carinho diluído na canja da mãe. Era, inclusive, proibido sair do repouso. O melhor remédio era o colo combinado com o descanso. Sopa, chá e abraço quente. Tiro e queda! No outro dia, lá estava eu de mochila nas costas. 
Hoje, quando engulo e sinto aquele ardor de garganta inflamada, estremeço. Cinco da manhã e a dor me acordou. A saliva escorregou feito lâmina cega. Fazia frio e notei que restou uma fresta na janela para o vento entrar. Descuido meu e falta dela.

Dia de febre, para o adulto, é dia comum. Minto: dia de febre é dia que se arrasta dolorosamente até o fim. Nada de coberta, canja temperada com carinho ou aquele aconchego que brota do colo. Não há espaço na agenda para tamanhas providências. 
Quase sete anos após sair de casa, concluo: longe da mãe, aquele descanso gostoso causado pelas enfermidades deixou de existir. Só me resta, agora, colocar uma pastilha de mel e limão sintéticos na boca e ir trabalhar. Na volta, engulo mais um comprido para dormir, afinal, o relógio não faz questão de andar mais devagar para que eu encontre as ervas de beira de rio e faça um xarope caseiro, igual ao que minha tia guarda a receita no coração.

Amanhã, talvez, por falta de descanso ou cuidado, a garganta ainda teime em arder. Estar doente dói mais quando estamos sozinhos.

Muito (des)obrigada

Nas coisas mais satisfatórias do mundo, mora o agradecimento. Não me refiro à expressão "muito obrigado(a)" disparada feito tiro programado ao término de ações. Essa, convenção social, deveria ser corriqueira, apesar de ainda estar em falta em algumas prateleiras dos bons costumes. 
Penso que temos dificuldades em lidar com agradecimentos. Como quando faço aniversário e, ao receber felicitações, respondo, sem pensar: Para você também! Oras, o aniversário é só meu. Deveria, então, disparar um dos tantos "muito obrigada" que se acomodam na ponta da língua, esperando seu uso. No entanto, nunca gostei dessa tal expressão escolhida para demonstrar agradecimento.

Perdoar é paz



Do lado de fora, nunca saberei por inteiro o que se passa em seu universo particular. Eu aceito os limites de minha compreensão.
Enfrentar fila de padaria em manhã de poucos graus é um ato de coragem. A fornada acabara de sair. Dava para ouvir os suportes metálicos, aonde crescem os pães, sendo retirados dos fornos de alta potência. Do lado de cá do balcão, todos estavam ansiosos, retraídos, arrepiados, mãos nos bolsos à espera do acompanhamento para o café que, dali a alguns minutos, aqueceria-lhes a alma. 
Podemos aprender muito com as filas. É preciso ouvir o que elas têm a dizer.

Iracema e a literatura machista




Leitura é coisa cíclica. Num dia, gosta, noutro, desgosta. Depende de quem somos naquele instante. Li, pela primeira vez, Iracema, de José de Alencar, há oito anos. Na época, era aluna do ensino médio e meu interesse era ser aprovada no vestibular. Confesso que não encontrei o tal encantamento que Machado de Assis enxergou na obra, quando a classificou como a mais perfeita prosa-poética que já lera. Enxerguei naquelas páginas amareladas uma relação de amor entre Iracema e Martim, a idealização da índia brasileira, a exaltação da cor local e mais outras tantas características listadas no material didático. Fiz leitura mecânica. Compreendi apenas o que o vestibular gostaria que eu compreendesse.

As vantagens da casa cheia

Morar sozinha é um encontro permanente comigo mesma. Meu interior extrapolado em cada detalhe do apartamento. Escolhi o silêncio de um só para poder ouvir meus pensamentos com mais clareza e estou satisfeita com o resultado. Só tem um problema: cozinhar sozinha. 
Encaro o cozinhar como um momento de partilha. Mistura dos sabores que me apetecem com o gosto daqueles que compartilharão a mesa comigo. Colocar o resultado da mágica acelerada pelo fogo ao centro da mesa e deixar que o aroma do prato nos leve a um estado de transe - o estar-junto dos cinco sentidos. 
No horário do almoço, subindo as escadas do meu prédio, senti o cheiro de comida feita casa esgueirando-se pelo vão de uma das portas daquele andar. Lembrou-me o bife acebolado que me recebe aos finais de semana, quando visito a casa da minha mãe. Junto ao cheiro, o som de um comentário que elogiava o prato. Não pude ver a cena, mas a imagem daquele momento compartilhado é fácil de imaginar. Deu saudade de ter todas as cadeiras ocupadas e da mesa posta. Televisão não é companhia e, de repente, o sofá tornou-se tão incômodo.

Hoje, almocei com uma amiga querida, mas, confesso: a mesa de um restaurante não tapa o buraco de uma casa vazia na hora das refeições. Ali, os sentidos ficam tímidos diante do olhar das pessoas ao redor. O ritual é caseiro, não tem jeito.
São esses momentos de descuido, o almoço dos vizinhos ou uma cena imaginada, que nos fazem lembrar de que a solidão é boa e, muitas vezes, necessária, mas a casa cheia também tem suas vantagens.

Presença sem amarras

Um dia, pretendo ser professora universitária. Por ora, a educação informal ensina-me muito sobre a sala de aula. Estar, simultaneamente, dos dois lados de um ambiente de ensino-aprendizagem é uma experiência feita para abrir os olhos. 
Dia desses, recebi uma mensagem de uma aluna perguntando em qual horário seria minha aula. Ela tinha um trabalho a fazer, mas gostaria de se programar para estar presente. Naquele momento, respondi à mensagem e, confesso, não dei tamanha importância ao conteúdo.

Um respiro no caos: de início, o arroz queimou



Eu tenho um ritual para fazer arroz. Ansiosa, é tortura esperar toda aquela água evaporar. Enquanto o arroz cozinha, lentamente, leio uma ou duas crônicas de escritores queridos. Hoje, no entanto, a maldição do encanto fácil me tocou. Para me isentar da culpa, permita-me dizer que era Rubem Alves. O último livro que escreveu antes de sua partida. Encantada com as palavras, comecei um terceiro texto e deixei o arroz queimar. 
Diante da panela chamuscada, o jeito era buscar abrigo naquele restaurante de sempre.

Um desabafo de quem é de Humanas: essa história de miçangas cansou



Eu sou de Humanas. Teoricamente, as profissões englobadas por essa área têm o ser humano e suas interações sociais, culturais, econômicas e políticas como objeto de estudo. Permeados de subjetividade, os cursos de Humanas, na maioria das vezes, prezam por reflexão e formas alternativas de ensino-aprendizagem. Assustou? Era de se esperar, mas não os culpo, afinal, nós mesmos, estudantes e profissionais, subjugamos e contribuímos para a estereotipação da área.

Responsabilidade compartilhada


Acabo de descobrir que uma possível justificativa para minhas dores de cabeça constantes, além de outras reações indesejadas, como as oscilações de peso e humor, que, ultimamente, dão as caras com mais frequência, é o uso do anticoncepcional.
Coincidentemente, deparei-me com uma discussão sobre o anticoncepcional masculino e a oportunidade de fazer os homens assumirem mais responsabilidade no controle da natalidade. Imaginei, por um momento, um mundo em que a mulher não carregasse grande parte do peso de uma gravidez sobre seus ombros. Uma revolução comportamental e sexual.

Sobre nomes e fôlegos



Quem tem nome pouco comum nasce com a resiliência correndo nas veias. É preciso estar preparado para as mil e uma variações que nos acompanham pelo resto da vida. Moldar-se a cada letra adicionada, trocada ou subtraída.
Meu avô paterno é Osvaldo na certidão de nascimento, mas todos o chamam de Chicão. Certa vez, quando tinha pouca idade e muita imaginação, perguntaram-me o nome dos meus avós e, de prontidão, respondi Vânia e Chicão. O erro rendeu risos e uma reflexão tardia sobre quão profundamente mergulhamos nas águas do outro.
Assinaturas de e-mail são termômetros preciosos de atenção. Repetimos o ritual corporativo diariamente.

Quando precisar de um absorvente, não precisa sussurrar



Quando menstruou pela primeira vez, a mãe aconselhou-a a não contar o fato. Há uma época em que somos perseguidas. A menarca é pauta quente e todos querem saber qual colega de sala sangrou primeiro.
Nos primeiros meses, as aulas de educação física deixam de ser diversão e tornam-se torturas lentas. Não sabemos lidar com aquele absorvente desconfortável entre as pernas. Corremos de forma estranha e o suor é preocupação que, de tanto existir, não cabe dentro de nós. O medo de que uma gota saia dos limites é permanente. Menstruação é assunto proibido.

Ensinamentos da adoção



Primeiro ensinamento proporcionado pela adoção: existem algumas situações que fogem do nosso controle, independentemente de esforço, devoção ou teimosia. O xixi no lugar errado e as reações indesejadas do outro, cachorro ou ser humano, existem para nos mostrar que o domínio é pura ilusão. Os cordéis de marionete postos naqueles que nos rodeiam são frutos de uma imaginação egoísta, que insiste em nos fazer acreditar na eficácia de um comando, quando, na verdade, não somos capazes de, ao menos, controlar nossa própria ansiedade diante do desconhecido e não habitual. 
Conviver, com cachorro ou ser humano, é cortar os cordões e aceitar o não-controle. Permitir, sem angústia, o vai-e-vem dos dias.

5 coisas para não dizer a quem está em um relacionamento abusivo


Se você perceber que uma de suas amigas ou um de seus amigos está em um relacionamento abusivo, tenha cuidado. Relacionamento não é sinônimo de namoro, portanto, para sofrer abuso, físico ou psicológico, basta possuir algum tipo de ligação, seja profissional ou pessoal, próxima ou distante. Em muitos casos, somos controlados e manipulados sem consciência da dimensão daquela situação, por isso, é preciso, sim, que recebamos apoio e que sejamos encorajados, mas, acreditem, palavras mal pensadas podem potencializar ainda mais as consequências do abuso.

Machado vive!



Quando preparo uma aula especial sobre Machado de Assis, num dia chuvoso acompanhado de camomila com cidreira, - e faço questão de extrapolar o conteúdo programático para destinar o tempo que esse mestre mulato merece, redescubro alguns dos motivos que me levam a amar a Literatura. E mais: relembro o porquê de eu me esforçar tanto para compartilhar conhecimentos literários com meus alunos da forma mais bonita possível.

A gente anda tão triste




Naquele ponto de ônibus tem tanta tristeza. Caramba!
Depois das seis, o desalento escorre pelos olhos. Água em correnteza para diluir toda a paleta de cores da alegria. Lava de qualquer jeito, deixando resquício sujo para o amanhã. Se eu pudesse escolher uma trilha sonora para o entardecer, seria Radiohead. Posso imaginar Like a Stone tocando no fone deles sem parar. Um gosto de não-estar invadindo-lhes a boca, sendo empurrado garganta abaixo para preencher o vazio de um estar-aqui não desejado. Depois das seis, o presente bate à porta. A gente anda tão triste.
Por que é que, depois das seis, a pálpebra insiste em pesar?

domingo, 8 de maio de 2016

O Dia das Mães que ninguém vê



Neuza* é moradora da Vila Brandina, bairro da região leste de Campinas. É merendeira de escola estadual há mais de uma década e não se imagina em outro cargo, já que não tem tempo para estudar para os concursos públicos da próxima estação. Os sete filhos consumiram sua vida. Todos do mesmo pai, ainda que o pai não se lembre da cara de todos. Partira antes do primeiro choro do último filho. Neuza peitou o destino e, de tanto encher pratos na escola que lhe garantia salário, encheu também as sete cumbucas que se dispunham em uma mesa de quatro lugares. Fez-se mãe e pai em um só corpo.
A filha mais velha engravidou logo. Foi mãe aos 16 e fugiu aos 17. Levou consigo o bebê em fraldas. Talvez tenha realizado o sonho de brincar com a boneca que nunca teve. Culparam Neuza por nunca ter lhe alertado sobre os método contraceptivos. 

Restaram-lhe seis. 

Na minha calçada, tem espaço para a flor do outro morar


Segunda-feira é dia de tirar o lixo. Colocar para fora todas as embalagens vazias que empacotaram as doses de aconchego do final de semana. Meu prédio não tem elevador, o que deixou de ser um incômodo e fez das escadas as domadoras da minha ânsia de chegar. Desci carregada de sacos pretos. Seis lances de escadas. Na metade, comecei a escutar a discussão. A vizinha do primeiro andar batia boca com a moradora do segundo. Desacelerei os passos. 
- Isso é um absurdo! Não quero sujeira sua em minha varanda! 

O dente do siso

Eu tenho os quatro dentes do siso. Todos já apontaram em seus respectivos lugares na gengiva. Estão intactos. Um deles, o do lado esquerdo, inflamou. Nos primeiros momentos, a dor, insuportável que é, fez nascer a ideia de extração. Eu teria que, finalmente, enfrentar o dentista e tirar dali o incômodo.
Sorrindo e caminhando em direção à dor, o medo a tirou para dançar. Evitei o telefone e não agendei um horário. Deixei o dente pulsar na boca. Senti a intensidade de sua presença a cada mastigada. A dor, de tanto rodar de mãos dadas com o medo, demonstrou cansaço. Saiu de cena. Retirou-se, cicatrizando a gengiva maltratada pelo dente pontiagudo. O medo a deixou tonta e criou em mim a ilusão de que aquela sensação dolorida nunca existira. Fiz as pazes com o siso e decidi que o deixaria enraizado, vizinho dos molares do lado esquerdo. 
Hoje, meses após a reconciliação, a dor acordou. Senti latejar no começo da manhã. Pensei que fosse coisa passageira. Ignorei. Perto do almoço, no entanto, a gengiva inchou. Não comi. Na angústia, pensei em pegar o telefone e tomar uma atitude. Hesitei. Esperei, mais uma vez, o medo dar as caras, impedindo-me de enfrentar, de uma vez por todas, a extração.
Enquanto convivo com a dor, que, de tempos em tempos, vem e vai, penso: quantos sisos deixamos nos incomodar e tornar os dias doloridos diante da ilusória sensação de alívio causada pelo medo?
O medo, esse senhor de ar autoritário, é mestre na arte da enganação. Camufla os desconfortos, fazendo-nos acreditar que o hiato entre uma inflamação e outra é mais satisfatório do que a paz permanente. Amarra-nos em nossas inseguranças e estorva, alimentando, no peito e na mente, a ideia de que não há nada de errado em permitir que a dor more em nós.
Chega o dia em que é preciso bater de frente. Fazer a dança de medo e de dor acontecer para fora dos portões. Do lado de fora, a frustração não é mais trilha sonora. Eles que rodopiem à vontade, enquanto desocupo espaços para a coragem e ligo para o dentista.
A extração é a despedida da dor. O último suspiro. Um buraco na gengiva feito para o alívio morar.


É preciso expulsar o medo para se desfazer da dor.

sexta-feira, 25 de março de 2016

Remédio para a tristeza




Ainda não inventaram melhor remédio para a tristeza do que bolo de cenoura quentinho feito com amor de mãe. O sucesso da receita é a prova inquestionável de que não importa para quão longe de casa voamos, seguimos, mesmo à longas distâncias, o rastro deixado pelo aroma da assadeira recém tirada do forno quando sentimos o peito apertar. 
Se um dia me dissessem para escolher apenas um exemplo de sinestesia, usaria, sem dúvidas, o bolo de cenoura da minha mãe. Um silêncio macio para apaziguar corações barulhentos. Cheiro doce para perfumar a alma. Mistura de um laranja amarelado coberto pelos tons escuros do chocolate. 
Depois do primeiro pedaço, transbordo. A paz espreguiça-se e deita folgada do lado de dentro. Já não resta mais espaço para o sentimento ruim. 

Estar segura é não deixar a tristeza entrar. É por isso que costumam dizer por aí que casa de mãe traz segurança. Aqui, a proteção não é feita de muros altos ou alarmes, mas de amor - esse sentimento tão abstrato que, para mim, tem cheiro de bolo de cenoura com cobertura de chocolate.

O ódio ao próximo



Fala-se muito de amor ao próximo, de ódio, pouco. Odiar é coisa censurada. Não faz bem aos olhos do outro. São nos momentos de estresse e pressão que, como bomba relógio, explodimos e machucamos com nossos estilhaços raivosos aqueles que estão nas proximidades. No interior de nossa ambivalência, ódio e amor não se excluem, convivem - e isso me amedronta. Somos capazes de amar e odiar na mesma intensidade. 

Ser adulto


Compreendi o que é ser adulto em uma ida ao banco. Não pelos boletos que estavam em minhas mãos, suadas de preocupação, prontos para serem pagos ou pela responsabilidade que ronda o ambiente bancário, cheio de prazos e juros sisudos. Foi uma tatuagem a responsável por essa compreensão repentina. Explico: enquanto esperava a minha vez de usar o único caixa eletrônico em funcionamento, contemplava as costas de uma moça impaciente. Com os cabelos presos em um coque mal feito, deixou à mostra a frase que eternizara na pele em caligrafia assimétrica. 
"Somos a soma de nossas decisões". Eu já lera essa citação em algum lugar literário, mas, como o tempo de espera estendeu-se para além do esperado, fiquei repetindo-a em busca de um significado. Decisões, pensei, envolvem escolhas e renúncias. Somos, portanto, a soma de nossas escolhas e renúncias. Percebi, naquele momento, que só nos tornamos adultos quando convivemos em paz com a dúvida de nossas decisões. Os adultos sabem que nunca terão certeza absoluta de nada e sabem que só a morte física é definitiva - porque já "morreram" diante de fracassos e frustrações, frutos de suas decisões, e voltaram à vida.
Ao entender que é normal morrer várias vezes em uma única existência, perdemos o medo de errar e, finalmente, crescemos. Ser adulto é, no final das contas, morrer, recuperar o fôlego e ressuscitar incontáveis vezes em um único dia.

quarta-feira, 9 de março de 2016

Sacadas



Sempre considerei apartamentos espaços sufocantes. Nunca morei em um que tivesse sacada, talvez fosse esse o principal motivo que me levara a encarar as antigas moradas como inimigas da inspiração. Agora, tenho uma. Saliência de concreto que permite o encontro entre o mundo aqui de dentro com o lá de fora. Uma porção de céu azul no interior de quatro paredes.
Sacada é coisa mesmo interessante, descobri - faz o tempo passar em ritmo diferente. A gente senta ali, faz uma horta vertical, olha o horizonte, sente o cheio do manjericão que já mostra os primeiros brotos e perde a nitidez de vista. 
Eu gosto de brincar com as palavras, mas o apartamento sempre foi espaço pequeno demais para quem cria. Somos cães de grande porte presos em uma porção do terceiro andar. A sacada é fresta aberta para inspiração adentrar, ainda que de mansinho, tímida, desacostumada. Decidi: de agora em diante, fiz as pazes com os apartamentos, mas só vou para onde tenha sacada

segunda-feira, 7 de março de 2016

A solidão das mulheres incomoda



Duas jovens argentinas foram assassinadas no Equador. Viajavam sozinhas. Estavam vulneráveis, disseram. Faltava-lhes alguma coisa. Mas faltava-lhes o que? 
Com 18 anos, decidi morar sozinha. Ouvi, incontáveis vezes, sobre os perigos de estar só. O medo do trajeto solitário do ponto de ônibus até a portaria do meu apartamento era reflexo do medo de ser mulher. Como é que pode uma menina de 18 anos morando sozinha? Faltava-me algo, diziam eles. Mas faltava-me o que? 

Minha solidão precoce era tóxica à sociedade. Uma erva daninha que poderia causar estragos aos jardins do machismo. Depois de tanta imposição, fechei as portas do meu singular e aceitei a exigência de viver no plural.