sexta-feira, 25 de março de 2016

Remédio para a tristeza




Ainda não inventaram melhor remédio para a tristeza do que bolo de cenoura quentinho feito com amor de mãe. O sucesso da receita é a prova inquestionável de que não importa para quão longe de casa voamos, seguimos, mesmo à longas distâncias, o rastro deixado pelo aroma da assadeira recém tirada do forno quando sentimos o peito apertar. 
Se um dia me dissessem para escolher apenas um exemplo de sinestesia, usaria, sem dúvidas, o bolo de cenoura da minha mãe. Um silêncio macio para apaziguar corações barulhentos. Cheiro doce para perfumar a alma. Mistura de um laranja amarelado coberto pelos tons escuros do chocolate. 
Depois do primeiro pedaço, transbordo. A paz espreguiça-se e deita folgada do lado de dentro. Já não resta mais espaço para o sentimento ruim. 

Estar segura é não deixar a tristeza entrar. É por isso que costumam dizer por aí que casa de mãe traz segurança. Aqui, a proteção não é feita de muros altos ou alarmes, mas de amor - esse sentimento tão abstrato que, para mim, tem cheiro de bolo de cenoura com cobertura de chocolate.

O ódio ao próximo



Fala-se muito de amor ao próximo, de ódio, pouco. Odiar é coisa censurada. Não faz bem aos olhos do outro. São nos momentos de estresse e pressão que, como bomba relógio, explodimos e machucamos com nossos estilhaços raivosos aqueles que estão nas proximidades. No interior de nossa ambivalência, ódio e amor não se excluem, convivem - e isso me amedronta. Somos capazes de amar e odiar na mesma intensidade. 

Ser adulto


Compreendi o que é ser adulto em uma ida ao banco. Não pelos boletos que estavam em minhas mãos, suadas de preocupação, prontos para serem pagos ou pela responsabilidade que ronda o ambiente bancário, cheio de prazos e juros sisudos. Foi uma tatuagem a responsável por essa compreensão repentina. Explico: enquanto esperava a minha vez de usar o único caixa eletrônico em funcionamento, contemplava as costas de uma moça impaciente. Com os cabelos presos em um coque mal feito, deixou à mostra a frase que eternizara na pele em caligrafia assimétrica. 
"Somos a soma de nossas decisões". Eu já lera essa citação em algum lugar literário, mas, como o tempo de espera estendeu-se para além do esperado, fiquei repetindo-a em busca de um significado. Decisões, pensei, envolvem escolhas e renúncias. Somos, portanto, a soma de nossas escolhas e renúncias. Percebi, naquele momento, que só nos tornamos adultos quando convivemos em paz com a dúvida de nossas decisões. Os adultos sabem que nunca terão certeza absoluta de nada e sabem que só a morte física é definitiva - porque já "morreram" diante de fracassos e frustrações, frutos de suas decisões, e voltaram à vida.
Ao entender que é normal morrer várias vezes em uma única existência, perdemos o medo de errar e, finalmente, crescemos. Ser adulto é, no final das contas, morrer, recuperar o fôlego e ressuscitar incontáveis vezes em um único dia.

quarta-feira, 9 de março de 2016

Sacadas



Sempre considerei apartamentos espaços sufocantes. Nunca morei em um que tivesse sacada, talvez fosse esse o principal motivo que me levara a encarar as antigas moradas como inimigas da inspiração. Agora, tenho uma. Saliência de concreto que permite o encontro entre o mundo aqui de dentro com o lá de fora. Uma porção de céu azul no interior de quatro paredes.
Sacada é coisa mesmo interessante, descobri - faz o tempo passar em ritmo diferente. A gente senta ali, faz uma horta vertical, olha o horizonte, sente o cheio do manjericão que já mostra os primeiros brotos e perde a nitidez de vista. 
Eu gosto de brincar com as palavras, mas o apartamento sempre foi espaço pequeno demais para quem cria. Somos cães de grande porte presos em uma porção do terceiro andar. A sacada é fresta aberta para inspiração adentrar, ainda que de mansinho, tímida, desacostumada. Decidi: de agora em diante, fiz as pazes com os apartamentos, mas só vou para onde tenha sacada

segunda-feira, 7 de março de 2016

A solidão das mulheres incomoda



Duas jovens argentinas foram assassinadas no Equador. Viajavam sozinhas. Estavam vulneráveis, disseram. Faltava-lhes alguma coisa. Mas faltava-lhes o que? 
Com 18 anos, decidi morar sozinha. Ouvi, incontáveis vezes, sobre os perigos de estar só. O medo do trajeto solitário do ponto de ônibus até a portaria do meu apartamento era reflexo do medo de ser mulher. Como é que pode uma menina de 18 anos morando sozinha? Faltava-me algo, diziam eles. Mas faltava-me o que? 

Minha solidão precoce era tóxica à sociedade. Uma erva daninha que poderia causar estragos aos jardins do machismo. Depois de tanta imposição, fechei as portas do meu singular e aceitei a exigência de viver no plural.