terça-feira, 13 de dezembro de 2016

Marcela não me representa

Eu prometi. Prometi que deixaria de pegar no pé de Marcela Temer. Fiz a promessa de não mais julgar sua postura virginal saída dos catálogos de propaganda dos anos dourados, aqueles em que as mulheres eram vistas como penduricalhos decorativos e frágeis. Eu prometi. Juro que prometi. Mas aí, veio o “Criança Feliz” e aquele papo de pureza infantil, que, aliás, combina muito com Marcela. Falaram também sobre a importância de cada cidadão desde a gestação, fazendo demonstração clara da postura governamental contrária à legalização do aborto. Caramba! Eu estava me segurando. Eu juro. Até que Marcela se colocou como representante da categoria feminina. Não deu para segurar.

O Journal of Obstetrics & Gynaecology (BJOG) divulgou dados de um estudo realizado em países em desenvolvimento. Sete milhões de mulheres são internadas por ano por complicações de saúde provocadas por abortos clandestinos. Todos os anos, 22 mil morrem pelo mesmo motivo. A dor e a morte são silenciosas.
Um outro estudo, realizado na UnB, em 2013, demonstrou que, no período de um ano, o número de abortos induzidos no Brasil variou de 685.334 a 856.668. No entanto, segundo dados do Ministério da Saúde, foram registrados apenas 1.523 casos de abortos legais.
No ano passado, foram 205.855 internações decorrentes de abortos no país — sendo 51.464 espontâneos e 154.391 induzidos. Uma diferença significativa demais para não ser levada em consideração. De acordo com o Instituto de Medicina Social da Uerj, o valor médio da diária de uma internação no SUS é de R$ 413. Sendo assim, mesmo que as mulheres hospitalizadas passassem apenas um dia sob cuidados médicos, o governo gastou R$ 63,8 milhões por conta dos abortos induzidos.
Essas informações estão disponíveis na rede. Não precisei de um procedimento investigativo complexo para obtê-las. Tenho certeza de que Marcela, que, segundo Temer, fui muito bem cuidada durante a primeira infância, também tem acesso aos dados.
A regularização do aborto é só um dos inúmeros exemplos de lutas sufocadas pelo discurso da primeira-dama. Igualdade de gênero, posição social da mulher e paridade de direitos trabalhistas, incluindo a salarial, são outros pontos que podemos desenvolver.
O discurso maternal, responsável por colocar a mulher no lugar que o patriarcado tanto deseja, faz a base feita de resistência feminina, que se debate para se soltar das amarras machistas, desmoronar. Voltamos à terra batida. Pés no chão. Voltamos para o lugar de onde, segundo eles, não devíamos ter saído.
Quando Marcela é escolhida como embaixadora de um programa de caráter maternal, com a intenção de incentivar as mulheres do país a aderir ao programa, temos, diante dos olhos, a representação antagônica do fortalecimento do movimento feminista da última década. Marcela não é, nem de longe, representante da categoria feminina do país.
Eu me segurei. Mas não é nada é fácil ver uma mulher ocupando o máximo posto político do país de 2011 a 2016 e, no mês seguinte, ouvir dizer que a representação feminina do Brasil agora veste renda, tem voz contida e ar angelical.
A criança pode até ficar feliz, mas será que nós, mulheres, demonstraremos alegria em ser representadas por Marcela Temer?
Maternidade não precisa ser sinônimo de infelicidade.

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